quinta-feira, 15 de março de 2012

Anistia, Impunidade e Quartéis

Fiquei fora do ar uns dias. Absoluta falta de assunto. Também não vou ficar aqui enchendo lingüiça (e o saco de quem se dispõe a me acompanhar no blog) só pra dizer “presente”, né?
Mas hoje, li na imprensa uma coisa interessante, e acho que devo comentar.
No tempo da ditadura militar, os donos do poder faziam o que bem entendiam, como bem entendiam, e com quem bem entendiam. Cometeram os crimes mais bárbaros, amparados pelo aparelho de Estado.
Suas represálias, sempre de grande brutalidade, não distinguiam aqueles que resistiam à ditadura de armas na mão daqueles que o faziam apenas esgrimindo suas ideias.
Todos eram presos, torturados e, frequentemente, mortos.
Em 1979, quando as forças ditatoriais já percebiam nitidamente que o avanço da sociedade brasileira em direção à democracia era irresistível e que sua derrota era iminente, veio a anistia.
No entanto, ainda detinham o poder, e seu peso na correlação de forças vigente no País ainda era considerável. Deste modo, apressaram-se a conceder a anistia, de modo a moldá-la a seu gosto, e desta forma, impor-lhe um limite inédito. A nossa foi uma estranhíssima anistia “recíproca”.
Assim, todos os criminosos que se utilizaram da estrutura do Estado para, em nome dele, cometer as maiores barbaridades, saíram-se impunes. Argumentavam que se isso ocorreria com os “do outro lado” (que resistira à ditadura e a combatera), era justo que abrangesse a eles também.
Só esqueceram de considerar que esse “outro lado” já vinha sendo punido por eles próprios, e há mais de duas décadas, com o poder do Estado, e dinheiro do contribuinte, usado em proveito próprio. E punições, como disse, das mais torpes e cruéis. Indefensáveis, já nem se diga pelo critério da legalidade, porque a ditadura cria suas próprias leis de exceção, que não valem nada, mas por critérios da mais elementar humanidade.
Foi feita, assim, justiça de uma mão só.
E tem gente com passado que envergonharia até o mais cínico dos nazistas, de tão sádico, que anda por aí, na boa, sem jamais ter tido que dar uma única satisfação a ninguém.
Enfim, foi essa a lei que se conseguiu na época.
Como não canso de dizer, a elite do Brasil é talvez a mais competente do mundo na criação de mecanismos de dominação. Afinal, não foi aqui que se inventou essa coisa absolutamente inovadora, que o mundo nunca tinha visto antes (e ficou boquiaberto de admiração), a ditadura sem ditador?
Muito bem.
Todos os países do mundo que passaram por ditaduras como a nossa e saíram, fazem questão de rever e resgatar esse passado e, na medida do possível, punir os criminosos.
Sabem que sem virar a página sua História fica de certa forma suspensa no ar.
Nós, graças à competência de nossas elites, estamos impedidos de fazer isso.
Recentemente foi tentada, junto ao Supremo Tribunal Federal, uma nova interpretação da Lei de Anistia, de modo a que se pudesse responsabilizar os torturadores, sem sucesso. Nossa Corte Maior sepultou de vez essa possibilidade.
Até a Comissão de Direitos Humanos da ONU, dia desses, estranhou a timidez do Brasil em reexaminar seu passado, rever os atos da ditadura e, eventualmente, punir algum criminoso.
E então, apareceu um novo sopro.
Tem um tal de Sebastião Curió (Sebastião Rodrigues de Moura), já ouviram falar? Trata-se de um personagem dos mais sinistros da nossa história. Participou ativamente da repressão, e com certeza tem muito sangue nas mãos.
Também nunca respondeu por nada. Aliás, pelo contrário, ainda fez carreira política, e hoje vive tranquilamente, sem nenhum problema.
Bom.
Lá pelas tantas, esse Curió era militar e combatia a guerrilha armada que, na região do Rio Araguaia lutava contra a ditadura, por volta de 1974. Até aí, tudo bem. Acontece que, a certa altura, ele aprisionou alguns guerrilheiros.
Pois não é de ver que desde aquele dia ninguém nunca mais viu ou ouviu falar dessas pessoas?
Sumiram. Ninguém sabe, ninguém viu. Até hoje, quase 40 anos depois, não existe nenhuma pista do que foi feito deles.
Só ele é que sabe. E não conta. Pois em 1982 o próprio Garrastazu Médici, o mais sanguinário de todos os nossos ditadores militares disse que ele “sabe muita coisa” (veja em http://pt.wikipedia.org/wiki/Sebasti%C3%A3o_Curi%C3%B3).
Agora o sopro. O Ministério Público Federal passou a entender, dias atrás,  que o que o Curió fez nada mais é do que seqüestro, puro e simples (e não é? o que você acha?).
E, segundo o mesmo órgão, como as vítimas permanecem desaparecidas, esse seqüestro ainda não terminou.
Ora, a Lei de Anistia torna sem possibilidade de punição os crimes cometidos antes de sua promulgação, no longínquo ano de 1979.
Quer dizer: como o crime do Curió ainda está sendo cometido hoje, ele não está coberto pela lei.
Resultado, o MPF denunciou o Curió à Justiça! Por seqüestro qualificado.
Esta, a boa notícia.
Agora a má.
Isso provocou “tensão” nos quartéis, segundo a Gazeta do Povo de hoje.
Os militares entendem que é “revanchismo”. Ô palavrinha desgastada essa, sô.
Eu, sinceramente, não consigo entender. Sinceramente mesmo.
Qual militar que está no quartel hoje, 15 de março de 2012, que tem alguma coisa, alguma coisa que seja, com o que foi feito pelos que lá estavam durante a ditadura?
O sarney (com minúscula mesmo) tomou posse no lugar do Tancredo em 15 de março de 1985. Este foi o fim formal da ditadura militar.
Exatamente vinte e sete anos depois (exatamente mesmo, hein, que baita coincidência!), quem é que estava no quartel e ainda está lá?
Não posso apostar, mas acho que não deve ter ninguém.
E mesmo que tenha, estava tão no início da carreira que não mandava nada, não tinha qualquer influência no descalabro que os seus superiores tinham feito com o Brasil.
Por que raios tem eles que tomar as dores?
Ei, pessoal, acorda, a bronca não é pessoal. Não tem nada com vocês. Até porque não foram vocês! Deixa pra lá! Ninguém está falando nada contra vocês ou contra as Forças Armadas do Brasil.
O problema são alguns ex-integrantes delas, que não souberam honrá-las.
Que “revanchismo”? Estão querendo dizer que a “esquerda” estaria por trás do próprio Ministério Público Federal? Não posso crer nisso, de tão absurdo que seria.
Ademais, revanche contra quem? As Forças Armadas? Que nada. Como eu disse, o problema são pessoas, não instituições. Como tal, elas não estão envolvidas. Ao contrário, os militares de hoje, tomando as dores dos de ontem, ficando “tensos”, é que as envolvem.
Não precisa.
Garanto que a democracia dá conta.

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