Como todo mundo, tenho opiniões acerca de várias questões da nossa realidade brasileira em geral.
Vou aproveitar este espaço que estou conquistando junto a mim mesmo e a alguns poucos abnegados, para externá-las.
Sempre que eu for fazer uma dessas reflexões, vou intitular a postagem como “Meu Ponto de Vista”, de modo que quem não estiver interessado na minha opinião sobre coisa alguma já sabe que deve pular este pedaço.
Vamos lá.
Hoje, claro, o assunto não poderia deixar de ser o Conselho Nacional de Justiça. É o tema do momento.
Como todos devem saber, nesta semana o Supremo Tribunal Federal vai decidir quais são as atribuições desse órgão no que diz respeito à fiscalização sobre os juízes brasileiros.
De um lado, órgãos da magistratura defendem que o CNJ só pode intervir após as Corregedorias dos Tribunais regionais atuarem.
De outro, amplos setores representativos da sociedade entendem que essa intervenção pode – e deve – se dar de forma direta.
O pano de fundo é a manutenção ou não de privilégios que historicamente beneficiaram os juízes de nosso País, e a chegada da luz e da transparência ao último bastião público a elas ainda imune, nos dias de hoje, o Poder Judiciário.
Lembro quando me formei advogado, nos idos de 1975. Era o período mais duro da ditadura militar. Vigoravam leis de exceção, poucos tinham noção do que eram exatamente esses tais Estado Democrático de Direito e Império da Lei.
Juízes eram semideuses. Desembargadores, então, os próprios senhores do Olimpo.Todo-poderosos, inalcançáveis, senhores do bem e do mal, da vida e da morte.
Personalidades inquestionáveis. E inquestionadas. Deus-o-livre falar mal de algum.
No entanto, no meio jurídico da planície (nós, os humildes advogados), era senso comum que existia corrupção. Todos lidavam com isso como fato notório – aquele que independe de comprovação. Claro, sei que essa circunstância não faz disso verdade, mas eram tempos em que denunciar não se podia, quanto mais apurar!
De qualquer modo, o mais provável é que de fato houvesse. Afinal, isso tende a ocorrer em todas as áreas do setor público, em todos os países do mundo. E obviamente piora de forma exponencial quando o agente se sabe totalmente a salvo de olhares indiscretos, trabalhando nos desvãos escuros do poder isento de qualquer controle social.
Naquele tempo, Legislativo e Executivo desfrutavam também desse salvo-conduto. Nos dois a corrupção era igualmente endêmica. E, quanto a eles, da mesma forma, Deus-nos-livre abrir a boca para criticar.
Pois é.
O que mudou, de lá para cá?
Isso mesmo. Acertou quem disse que acabou a ditadura.
Hoje estamos sob o império da lei, vivemos o pleno estado democrático de direito. Os privilegiados esperneiam, mas está cada vez mais difícil escapar do controle social (isso, aliás, é tema para um outro “Meu Ponto de Vista”, que virá mais adiante)
Hoje vemos o cidadão exercendo de forma plena o direito de examinar com lente de aumento tudo o que se faz em seu nome, e com seu dinheiro. O nome disso? Transparência.
Em corolário, hoje o cidadão exerce de forma plena o direito de berrar contra o que discorda, em ambos os aspectos.
Executivo e Legislativo, coitados, já sofrem o diabo.
Sei, sei, a corrupção continua grassando em ambos, dirão os céticos.
É verdade. Sou obrigado a concordar.
Mas pense o seguinte. Se a corrupção fosse um furúnculo, a primeira medida para curá-lo não seria abrir a ferida e expor o carnegão? (Gostaram da palavra? Carnegão é o núcleo do furúnculo; aprendi isso com minha avó, lá nos primórdios da infância).
Com ele exposto, aí então aplica-se o remédio.
Pois é a mesma coisa.
Hoje, o carnegão do Executivo e do Legislativo já está aí, exposto aos quatro ventos. O remédio, ainda que seu efeito seja bem mais lento do que gostaríamos, já está sendo aplicado. É a democracia, que traz em seu ventre a politização do povo, a elevação do nível do seu esclarecimento, de modo a que se mobilize cada vez mais em favor da punição dos corruptos e da eleição de gestores melhores e mais íntegros.
Na ditadura fica tudo na sombra e a população nem mesmo fica sabendo das falcatruas que proliferam, para poder se revoltar contra elas.
E o Judiciário?
Por que foi que ninguém ainda buliu com o Judiciário?
Ele ficou quietinho no canto dele, até agora, se fingindo de morto.
E a verdade é que sua estrutura permanece exatamente a mesma dos tempos ditatoriais.
Salvo notáveis exceções, os juízes permanecem enxergando a si próprios como seres distintos do cidadão comum, pessoas acima do bem e do mal.
Será que é porque não são eleitos? Não precisam agradar ao povo, para pedir voto de quando em quando? Talvez.
Será que é porque não são eleitos? Não precisam agradar ao povo, para pedir voto de quando em quando? Talvez.
Só que ela, a sociedade, já não os vê assim. Nesses vinte e tantos anos de democracia, ela evoluiu de forma surpreendente, para tão pouco tempo. E para ela, o magistrado nada mais é do que um outro servidor público. E, portanto, sujeito exatamente aos mesmos deveres de todos os demais. Dentre esses, o de submeter-se permanentemente ao controle dela, sociedade, neste que é o mais eficaz antídoto à corrupção até hoje descoberto pelo homem.
Não se confunda, porém, tais deveres com a responsabilidade ou a missão de cada servidor. A do magistrado, evidentemente, é das mais nobres, fundamental mesmo até para a existência e subsistência do próprio Estado de Direito, alicerce maior da democracia, e por ela eles merecem o maior reconhecimento e toda a valorização profissional.
Ao meu ver, é exatamente essa confusão que permeia, de forma artificial, o debate sobre o CNJ.
Grande parte dos juízes, acostumados a escrutinar mas não a serem escrutinados, não vêem com bons olhos a recente investida do CNJ sobre suas trajetórias.
Lembremos um pouquinho do que vem a ser este organismo.
Ele foi criado em 2005, como resultado de um grande movimento de pressão popular e política destinado justamente a fornecer à sociedade algum controle sobre o Poder Judiciário. Esse movimento já enfrentara, na época, tenaz resistência corporativa da magistratura, que já antevia ali uma ingerência “indevida” em suas entranhas.
Nesses quase sete anos de atividade, entretanto, o órgão já contribuiu de forma significativa para sanar ou minimizar algumas das inúmeras mazelas da Justiça brasileira, mostrando, ainda uma vez, o bem que faz democratizar, arejar e levar transparência a qualquer instituição.
Muito bem.
O CNJ possui uma Corregedoria, cuja função é fiscalizar a magistratura.
Ocorre que os Tribunais, nos Estados, também possuem Corregedorias próprias, com função teoricamente idêntica.
Nos últimos tempos, a do CNJ resolveu “fuçar” de forma mais aprofundada alguns indícios muito fortes de irregularidades cometidas em alguns tribunais do País.
A reação corporativa não se fez esperar.
Dizendo (e aí a confusão artificial) que se pretende atingir as prerrogativas dos juízes, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) impetrou uma ação junto ao Supremo Tribunal Federal, argumentando que a corregedoria do CNJ não poderia fazer isso antes que as Corregedorias dos Tribunais o fizessem.
E obteve uma liminar dando-lhe provisória razão.
Nesta semana o STF se reúne para confirmar ou revogar a liminar.
Meu Ponto de Vista é que deveria revogar.
Historicamente, as Corregedorias dos Tribunais estaduais não funcionam, ou funcionam muito mal, no quesito apuração e punição de irregularidades praticadas por juízes. Os números existem, e são decididamente alarmantes.
Se ficar por conta delas – ou seja, interna corporis – lá se vai mais uma conquista da democracia, sacrificada no altar do corporativismo, esse câncer que corrói tantos setores no Brasil (e que renderá – aguardem – outro “Meu Ponto de Vista” futuro).
A liminar foi concedida pelo Ministro Marco Aurélio Mello, jurista a quem muito admiro não só pelo seu grande saber, mas também por sua integridade. No entanto, considero-a equivocada por excesso de legalismo. Ateve-se à letra de lei de forma a meu ver bitolada, sem levar em conta a influência do contexto histórico e real sobre o caso concreto.
Ora, qualquer pessoa que lide com as leis (o que nós, os “iniciados” chamamos pomposamente de “operadores do Direito”) sabe que a interpretação menos indicada delas é aquela que se limita à sua literalidade. O próprio STF tem nos dado um rio de exemplos de julgamentos em que a lei é interpretada de forma flexível, mais sintonizada com a realidade vivida no momento do que com sua letra estrita. Querem um exemplo significativo? A união homoafetiva. Outro? A fidelidade partidária (os mandatos pertencem aos partidos e não aos candidatos eleitos).
Cabe ao juiz – e aí está ele agora, senhores, julgando sobre tema que atingirá a si próprio, e, portanto, usufruindo de uma oportunidade ímpar de mostrar ao País sua própria grandeza – adequar o Direito e a Lei ao momento real, porque se não o fizer será atropelado por ele.
O STF já deu inúmeras provas de que sabe fazê-lo. Vive, agora, seu momento supremo (sem trocadilho bobo). Se ratificar sua postura, entrará para a história deste País. Se negá-la, atirará ao lixo a credibilidade do próprio Judiciário (porque mostrará, de forma segura e detestável, que pimenta nos olhos dos outros é refresco), com conseqüências danosas para todos nós.
Mesmo que o faça, porém, ainda assim há avanços a comemorar. Esta é a primeira vez, na história do Brasil, que o Judiciário é colocado na berlinda. Já é um enorme progresso. Se não for ainda desta vez que conquistaremos seu bastião, será uma pena. Mas com certeza, haverá uma próxima. E, então, nos aguardem.