Tempos atrás, por ocasião do lançamento de um livro que resumia as atividades desenvolvidas dentro do projeto Mulheres da Paz, em São José dos Pinhais, elaborei o texto abaixo. Agora, por diversas razões, achei que deveria torná-lo público na internet.
"Em qualquer
lugar, a qualquer tempo, e sob qualquer forma, a opressão repousa em uma lógica
tão cruel quanto difícil de desconstruir: o privilégio é companheiro
inseparável do poder. Um não existe sem o outro.
A combinação
de ambos constrói um mecanismo quase indestrutível, cujo funcionamento se
destina a perpetuar o primeiro pelo exercício constante do segundo.
Quem possui o
poder desfruta de condições variadas e virtualmente infinitas de conservar as
situações do modo como melhor lhe favoreça.
Nos dias de
hoje isso inclui, por suposto, a utilização permanente, a serviço dos
interesses do opressor, de meios informativos e culturais massivos, de
quantidade e intensidade tais que são capazes de impor ao conjunto do meio
social, como se consenso fosse, a noção plena e inquestionável de que esse
estado de coisas é o que melhor convém a todos. E, mais ainda, que fora dele só
pode haver o caos. Pode-se fazer isso de forma violenta ou pacífica, conforme o
tempo, o lugar ou as circunstâncias da opressão em causa.
O ápice da
eficácia do círculo se dá exatamente quando dessa suposta verdade imutável,
forjada pelo opressor, se deixa convencer o oprimido.
A partir desse
momento, instalou-se a dinâmica do absurdo. Defensores de interesses opostos
passam a ocupar a mesma trincheira, aliados, batendo-se pela causa de apenas um
deles.
Ao outro,
iludido, enganado, resta tão somente a desesperança.
Contenta-se
com o ruim, convencido de que qualquer alternativa é ainda pior.
Exemplos desse
processo têm sido incontáveis ao longo da grande e fascinante aventura do ser
humano sobre a face do nosso planeta.
Felizmente,
porém, em vários momentos dela ocorrem, em contraponto, casos de rompimento dessa
corrente infernal, com a libertação e redenção de oprimidos de todos os tipos, pelo
alcance da igualdade.
Esses movimentos
vem sendo cada vez mais freqüentes. Quase sempre se iniciam com o lançamento
por alguém, em algum momento, de uma pequena semente. No início parece
destinada a secar, sucumbir no chão árido de platitudes assentadas e há muito cristalizadas.
Mas, contra várias expectativas, adubada pelo sonho que teima em não morrer, ela
frutifica na fertilidade de corações e mentes exauridos na sombra da perene
ausência de perspectiva. E culmina com o assomar, à plena luz, do fruto
exuberante: a liberdade conquistada.
Um dos maiores
tormentos do Brasil tem sido a opressão social e econômica. Resultado de
séculos de dominação implacável por parte de uma elite desprovida de escrúpulos, sensibilidade ou compaixão, ela
produziu, num país riquíssimo, em termos de distribuição de renda, riqueza e
oportunidades, uma situação de desigualdade e injustiça que se inclui entre as
mais perversas de todo o globo terrestre.
Executada de
forma cruel, tenaz e competente, tal dominação atingiu, com repugnante sucesso,
e em vários aspectos, o objetivo de persuadir o oprimido de que este deveria
ser o seu destino.
E fechou-se o
círculo.
Ocorreu,
porém, um paradoxo, que, de alguma forma, fez com que o processo eventualmente se
voltasse contra seu próprio criador.
Alguns dos
excluídos, mesmo julgando pertencer inexoravelmente a uma sub-classe que jamais
será alcançada por nenhum tipo de atenção pública, mesmo convencidos de que tal
situação é a única possível, nem por isso se conformam com ela. E optam pela
revolta violenta.
Despojados de
toda a esperança, e ao mesmo tempo atiçados por uma cultura de consumo voraz e
materialista, solucionam essa contradição no crime.
E com isso
apavoram a elite privilegiada e opressora.
A reação
desta, que não tarda, é coerente com toda a sua história. Quer pagar violência
com violência. Clama por mais opressão, por mais dureza. E se utiliza, nessa
busca, outra vez, de todos os meios que o poder lhe disponibiliza.
As
estatísticas dizem, sem contestação, que a esmagadora maioria dos crimes letais
no Brasil não só vitimizam mas também são praticados por homens, entre 16 e 25
anos, pobres, pretos ou pardos. Na disputa estabanada por espaço, identidade e
pertencimento na única via que lhes resta, os oprimidos matam-se entre si.
Enquanto esse fenômeno ocorre massiva e diuturnamente, nenhum clamor público se
vê. Ocupa, mal e mal, algumas linhas nas páginas policiais sensacionalistas,
sedentas de sangue.
Experimente um
desses criminosos, porém, vitimar um jovem da mesma idade, mas de classe média
alta. Conhecer-se-á, então, o poder da “opinião pública” (na verdade a opinião
do opressor) na busca de vingança. Redução de maioridade penal, aumento das
penas, fim da progressão delas, são os temas recorrentes. Pior, são tidos como verdadeiras
panacéias. Em uma palavra, mais cadeia, mais castigo para o oprimido que ousa
se rebelar.
Quando
adotado, esse remédio apresenta efeito, na melhor das hipóteses, nulo. A
História não economiza exemplos. No Brasil, o mais ilustrativo é a Lei dos
Crimes Hediondos (Lei 8.072). Editada em julho de 1990 como reação da sociedade
indignada pelo bárbaro assassinato da filha de uma conhecida autora de novelas
da Rede Globo, endureceu de forma severa as penas e seu regime de cumprimento,
para vários delitos. Quase 22 anos depois, a criminalidade brasileira ainda não
deu nenhuma mostra de reação positiva. Antes pelo contrário, como se sabe.
A
pena de morte, a mais dura de todas, jamais mostrou, em qualquer país onde é
adotada, efeito capaz de reduzir os níveis de violência.
É
que esta só reproduz a ela própria. Violência só gera mais violência.
A
perpetuação da lógica da opressão, por um lado, eterniza a injustiça, que é
ainda mais perversa por ser desnecessária, em um País tão rico; e, por outro,
infla a espiral da violência, transformando-a em um flagelo sem fim.
Daí
a necessidade de buscar a sua reversão.
Em
São José dos Pinhais, estamos convencidos de que o primeiro passo consiste em
lançar um raio de luz na consciência do oprimido, no sentido de desconstruir
aquele convencimento artificial que tão solidamente foi lá instalado.
Não,
ele não é um cidadão de segunda classe. Sim, ele tem tanto direito a receber
atenção da sociedade e do poder público quanto todos os demais. Não, sua
situação de desesperança não é um desígnio divino intocável. Sim, ele tem valor
para si próprio, para sua família, para seu grupo social, para seu Município e
para sua Nação.
Essa,
a nosso ver, a semente a ser lançada.
De
seu enraizamento no solo do tecido social fragilizado poderá nascer o
encadeamento natural de circunstâncias capazes de dar corpo a um movimento que,
em seu ponto culminante, desemboque na consolidação da cultura da paz.
Recuperar
a auto-estima das pessoas, devolver-lhes, mas em outro viés, identidade,
sensação de pertencimento e valorização, proporcionar-lhes objetivos morais,
emocionais, materiais – por que não?
Perspectiva
de vida digna. Cidadania.
Em
São José dos Pinhais, o Prefeito Ivan Rodrigues entendeu, desde o primeiro dia
de sua gestão, que esses são deveres do Poder Público e da própria sociedade
para com as comunidades social e economicamente fragilizadas. E isso não em uma
perspectiva meramente filantrópica ou mesmo apenas solidária, mas decorrente de
percepção política e até mesmo ampla e profundamente ideológica.
Compreendeu
que esse é o caminho para extinguir a lógica da opressão, atingindo em cheio,
com isso, a injustiça como um todo, e conseguindo ainda o magnífico efeito
colateral de ferir de morte, em seu nascedouro, a principal semente da
violência e da criminalidade endêmicas.
E
traçar esse caminho como prioridade decorre de uma compreensão ainda mais
abrangente acerca da própria finalidade precípua do Estado como gestor dos
direitos e interesses de todos os seus cidadãos, e não apenas da minoria
privilegiada, como sói ocorrer em nossas plagas.
É
preciso, neste passo, frisar que não nos seduzem as receitas mágicas, as ideias
miraculosas, as soluções prontas. Não costumam funcionar. Por isso, cabe chamar
a atenção para a palavra reiteradamente utilizada: caminho. Sabemo-lo
árduo, tortuoso e longo. E temos consciência de que estamos apenas em seu
início.
No
entanto, ele tem sido animador.
Em
verdade, a semente já foi lançada.
E
a julgar pelos primeiros sinais, frutificará com força.
“Mulheres
da Paz” é um exemplo. Talvez o mais significativo, até aqui.
Penso
que tudo o que as pessoas verão no presente livro representa a demonstração
concreta, poderosa, pujante, daquilo que acima procurei expor.
Nesses
meses em que, juntamente com outros tantos projetos e ações, trabalhamos ombro
a ombro com as Mulheres da Paz, aprendemos com essas heroínas muito mais do que
ensinamos. E vimos desabrochar perante nossos olhos deslumbrados um processo maravilhoso
e incontrolável de criação e afirmação de cidadania, de cuja dimensão e
desdobramentos eu, pelo menos, jamais poderia haver suspeitado.
Não
preciso me alongar esmiuçando-o. Ele está todo aqui, à vista dos leitores, em
imagens e textos.
Desconfio
inclusive, com emocionada sinceridade, que ele já se mostra irreversível.
Confio,
com romântica esperança, que provoque, ao final, o rompimento do círculo da
opressão.
E
que, com a libertação do oprimido, a conquista da igualdade e a volta da
esperança, possa devolver a paz não apenas a este, mas também ao próprio
opressor."