sexta-feira, 14 de março de 2014

A lógica da opressão e o fruto da semente

Tempos atrás, por ocasião do lançamento de um livro que resumia as atividades desenvolvidas dentro do projeto Mulheres da Paz, em São José dos Pinhais, elaborei o texto abaixo. Agora, por diversas razões, achei que deveria torná-lo público na internet.

"Em qualquer lugar, a qualquer tempo, e sob qualquer forma, a opressão repousa em uma lógica tão cruel quanto difícil de desconstruir: o privilégio é companheiro inseparável do poder. Um não existe sem o outro.
A combinação de ambos constrói um mecanismo quase indestrutível, cujo funcionamento se destina a perpetuar o primeiro pelo exercício constante do segundo.
Quem possui o poder desfruta de condições variadas e virtualmente infinitas de conservar as situações do modo como melhor lhe favoreça.
Nos dias de hoje isso inclui, por suposto, a utilização permanente, a serviço dos interesses do opressor, de meios informativos e culturais massivos, de quantidade e intensidade tais que são capazes de impor ao conjunto do meio social, como se consenso fosse, a noção plena e inquestionável de que esse estado de coisas é o que melhor convém a todos. E, mais ainda, que fora dele só pode haver o caos. Pode-se fazer isso de forma violenta ou pacífica, conforme o tempo, o lugar ou as circunstâncias da opressão em causa.
O ápice da eficácia do círculo se dá exatamente quando dessa suposta verdade imutável, forjada pelo opressor, se deixa convencer o oprimido.
A partir desse momento, instalou-se a dinâmica do absurdo. Defensores de interesses opostos passam a ocupar a mesma trincheira, aliados, batendo-se pela causa de apenas um deles.
Ao outro, iludido, enganado, resta tão somente a desesperança.
Contenta-se com o ruim, convencido de que qualquer alternativa é ainda pior.
Exemplos desse processo têm sido incontáveis ao longo da grande e fascinante aventura do ser humano sobre a face do nosso planeta.
Felizmente, porém, em vários momentos dela ocorrem, em contraponto, casos de rompimento dessa corrente infernal, com a libertação e redenção de oprimidos de todos os tipos, pelo alcance da igualdade.
Esses movimentos vem sendo cada vez mais freqüentes. Quase sempre se iniciam com o lançamento por alguém, em algum momento, de uma pequena semente. No início parece destinada a secar, sucumbir no chão árido de platitudes assentadas e há muito cristalizadas. Mas, contra várias expectativas, adubada pelo sonho que teima em não morrer, ela frutifica na fertilidade de corações e mentes exauridos na sombra da perene ausência de perspectiva. E culmina com o assomar, à plena luz, do fruto exuberante: a liberdade conquistada.
Um dos maiores tormentos do Brasil tem sido a opressão social e econômica. Resultado de séculos de dominação implacável por parte de uma elite desprovida de  escrúpulos, sensibilidade ou compaixão, ela produziu, num país riquíssimo, em termos de distribuição de renda, riqueza e oportunidades, uma situação de desigualdade e injustiça que se inclui entre as mais perversas de todo o globo terrestre.
Executada de forma cruel, tenaz e competente, tal dominação atingiu, com repugnante sucesso, e em vários aspectos, o objetivo de persuadir o oprimido de que este deveria ser o seu destino.
E fechou-se o círculo.
Ocorreu, porém, um paradoxo, que, de alguma forma, fez com que o processo eventualmente se voltasse contra seu próprio criador.
Alguns dos excluídos, mesmo julgando pertencer inexoravelmente a uma sub-classe que jamais será alcançada por nenhum tipo de atenção pública, mesmo convencidos de que tal situação é a única possível, nem por isso se conformam com ela. E optam pela revolta violenta.
Despojados de toda a esperança, e ao mesmo tempo atiçados por uma cultura de consumo voraz e materialista, solucionam essa contradição no crime.
E com isso apavoram a elite privilegiada e opressora.
A reação desta, que não tarda, é coerente com toda a sua história. Quer pagar violência com violência. Clama por mais opressão, por mais dureza. E se utiliza, nessa busca, outra vez, de todos os meios que o poder lhe disponibiliza.
As estatísticas dizem, sem contestação, que a esmagadora maioria dos crimes letais no Brasil não só vitimizam mas também são praticados por homens, entre 16 e 25 anos, pobres, pretos ou pardos. Na disputa estabanada por espaço, identidade e pertencimento na única via que lhes resta, os oprimidos matam-se entre si. Enquanto esse fenômeno ocorre massiva e diuturnamente, nenhum clamor público se vê. Ocupa, mal e mal, algumas linhas nas páginas policiais sensacionalistas, sedentas de sangue.
Experimente um desses criminosos, porém, vitimar um jovem da mesma idade, mas de classe média alta. Conhecer-se-á, então, o poder da “opinião pública” (na verdade a opinião do opressor) na busca de vingança. Redução de maioridade penal, aumento das penas, fim da progressão delas, são os temas recorrentes. Pior, são tidos como verdadeiras panacéias. Em uma palavra, mais cadeia, mais castigo para o oprimido que ousa se rebelar.
            Quando adotado, esse remédio apresenta efeito, na melhor das hipóteses, nulo. A História não economiza exemplos. No Brasil, o mais ilustrativo é a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072). Editada em julho de 1990 como reação da sociedade indignada pelo bárbaro assassinato da filha de uma conhecida autora de novelas da Rede Globo, endureceu de forma severa as penas e seu regime de cumprimento, para vários delitos. Quase 22 anos depois, a criminalidade brasileira ainda não deu nenhuma mostra de reação positiva. Antes pelo contrário, como se sabe.
            A pena de morte, a mais dura de todas, jamais mostrou, em qualquer país onde é adotada, efeito capaz de reduzir os níveis de violência.
            É que esta só reproduz a ela própria. Violência só gera mais violência.
            A perpetuação da lógica da opressão, por um lado, eterniza a injustiça, que é ainda mais perversa por ser desnecessária, em um País tão rico; e, por outro, infla a espiral da violência, transformando-a em um flagelo sem fim.
            Daí a necessidade de buscar a sua reversão.
            Em São José dos Pinhais, estamos convencidos de que o primeiro passo consiste em lançar um raio de luz na consciência do oprimido, no sentido de desconstruir aquele convencimento artificial que tão solidamente foi lá instalado.
            Não, ele não é um cidadão de segunda classe. Sim, ele tem tanto direito a receber atenção da sociedade e do poder público quanto todos os demais. Não, sua situação de desesperança não é um desígnio divino intocável. Sim, ele tem valor para si próprio, para sua família, para seu grupo social, para seu Município e para sua Nação.
            Essa, a nosso ver, a semente a ser lançada.
            De seu enraizamento no solo do tecido social fragilizado poderá nascer o encadeamento natural de circunstâncias capazes de dar corpo a um movimento que, em seu ponto culminante, desemboque na consolidação da cultura da paz.
            Recuperar a auto-estima das pessoas, devolver-lhes, mas em outro viés, identidade, sensação de pertencimento e valorização, proporcionar-lhes objetivos morais, emocionais, materiais – por que não?
            Perspectiva de vida digna. Cidadania.
            Em São José dos Pinhais, o Prefeito Ivan Rodrigues entendeu, desde o primeiro dia de sua gestão, que esses são deveres do Poder Público e da própria sociedade para com as comunidades social e economicamente fragilizadas. E isso não em uma perspectiva meramente filantrópica ou mesmo apenas solidária, mas decorrente de percepção política e até mesmo ampla e profundamente ideológica.
            Compreendeu que esse é o caminho para extinguir a lógica da opressão, atingindo em cheio, com isso, a injustiça como um todo, e conseguindo ainda o magnífico efeito colateral de ferir de morte, em seu nascedouro, a principal semente da violência e da criminalidade endêmicas.
            E traçar esse caminho como prioridade decorre de uma compreensão ainda mais abrangente acerca da própria finalidade precípua do Estado como gestor dos direitos e interesses de todos os seus cidadãos, e não apenas da minoria privilegiada, como sói ocorrer em nossas plagas.
            É preciso, neste passo, frisar que não nos seduzem as receitas mágicas, as ideias miraculosas, as soluções prontas. Não costumam funcionar. Por isso, cabe chamar a atenção para a palavra reiteradamente utilizada: caminho. Sabemo-lo árduo, tortuoso e longo. E temos consciência de que estamos apenas em seu início.
            No entanto, ele tem sido animador.
            Em verdade, a semente já foi lançada.
            E a julgar pelos primeiros sinais, frutificará com força.
            “Mulheres da Paz” é um exemplo. Talvez o mais significativo, até aqui.
            Penso que tudo o que as pessoas verão no presente livro representa a demonstração concreta, poderosa, pujante, daquilo que acima procurei expor.
            Nesses meses em que, juntamente com outros tantos projetos e ações, trabalhamos ombro a ombro com as Mulheres da Paz, aprendemos com essas heroínas muito mais do que ensinamos. E vimos desabrochar perante nossos olhos deslumbrados um processo maravilhoso e incontrolável de criação e afirmação de cidadania, de cuja dimensão e desdobramentos eu, pelo menos, jamais poderia haver suspeitado.
            Não preciso me alongar esmiuçando-o. Ele está todo aqui, à vista dos leitores, em imagens e textos.
            Desconfio inclusive, com emocionada sinceridade, que ele já se mostra irreversível.
            Confio, com romântica esperança, que provoque, ao final, o rompimento do círculo da opressão.

            E que, com a libertação do oprimido, a conquista da igualdade e a volta da esperança, possa devolver a paz não apenas a este, mas também ao próprio opressor."

3 comentários:

  1. Caro Marcelo o texto é interessante, mas com referencia ao tal de Constantino ele não está de todo errado. As pessoas não vivem sem as ricas conquistas e o bel prazer oferecido pelos capitalistas e fazem discurso diferente. Voce, por exemplo, tem coerencia. Porém, a culpa é da sociedade sim, com referencia a esses menores. Se o Bolsa Familia estiver certo, dentro de dois ou tres anos a nossa juventude estará em outro patamar, a violencia irá diminuindo, para haver maior conquista no social, não acha? Parabens pelo trabalho. Nogueira

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Nogueira, meu velho, acho ruim generalizar. Há pessoas e pessoas. É verdade que muitos são fracos, mas nem todos. Hoje o maior exemplo em contrário é o Pepe Mujica, do Uruguai. Eu poderia citar a você inúmeros outros. O Constantino, pra mim, está sempre errado. Pra mim, claro. Eu penso o oposto de absolutamente tudo o que ele pensa. Já sobre os jovens, acho que o Bolsa Família é uma boa medida, mas apenas uma, e pequena. É necessário mais. Não se trata de uma relação simples de causa e efeito, mas algo mais multifacetado e complexo. Por um lado, a inclusão é absolutamente fundamental. Mas por outro, existem outras medidas indispensáveis. Então, os programas do Pronasci (que você deve lembrar do nosso tempo aí em São José), se massificados, a médio e longo prazo poderiam trazer resultados significativos. Mas, ainda assim, não bastaria. é absolutamente necessária uma reforma completa, total, estrutural e cultural, de nossas polícias e de nosso modelo policial. E, ainda, considerando o estágio que já estamos vivendo em relação ao crime organizado em torno das drogas, são necessárias medidas que tornem esse mercado ilegal menos lucrativo. E por aí vai. Um abração.

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