segunda-feira, 30 de abril de 2012

Sobre opressão e libertação

          Na formatura das Mulheres do Povo, de São José dos Pinhais, dia 28 último, foi lançado o livro "A Vez e a Voz da Paz", que traz a memória do projeto Mulheres da Paz no município.
          Nele encontra-ser um texto meu que gostaria de compartilhar com os leitores deste blog.
          Assim, aos que estiverem interessados em uma reflexão acerca do empoderamento comunitário como forma de reverter a histórica situação de injustiça social no Brasil, aí vai.
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A lógica da opressão e o fruto da semente

Em qualquer lugar, a qualquer tempo, e sob qualquer forma, a opressão repousa em uma lógica tão cruel quanto difícil de desconstruir: o privilégio é companheiro inseparável do poder. Um não existe sem o outro.
A combinação de ambos constrói um mecanismo quase indestrutível, cujo funcionamento se destina a perpetuar o primeiro pelo exercício constante do segundo.
Quem possui o poder desfruta de condições variadas e virtualmente infinitas de conservar as situações do modo como melhor lhe favoreça.
Nos dias de hoje isso inclui, por suposto, a utilização permanente, a serviço dos interesses do opressor, de meios informativos e culturais massivos, de quantidade e intensidade tais que são capazes de impor ao conjunto do meio social, como se consenso fosse, a noção plena e inquestionável de que esse estado de coisas é o que melhor convém a todos. E, mais ainda, que fora dele só pode haver o caos. Pode-se fazer isso de forma violenta ou pacífica, conforme o tempo, o lugar ou as circunstâncias da opressão em causa.
O ápice da eficácia do círculo se dá exatamente quando dessa suposta verdade imutável, forjada pelo opressor, se deixa convencer o oprimido.
A partir desse momento, instalou-se a dinâmica do absurdo. Defensores de interesses opostos passam a ocupar a mesma trincheira, aliados, batendo-se pela causa de apenas um deles.
Ao outro, iludido, enganado, resta tão somente a desesperança.
Contenta-se com o ruim, convencido de que qualquer alternativa é ainda pior.
Exemplos desse processo têm sido incontáveis ao longo da grande e fascinante aventura do ser humano sobre a face do nosso planeta.
Felizmente, porém, em vários momentos dela ocorrem, em contraponto, casos de rompimento dessa corrente infernal, com a libertação e redenção de oprimidos de todos os tipos, pelo alcance da igualdade.
Esses movimentos vem sendo cada vez mais freqüentes. Quase sempre se iniciam com o lançamento por alguém, em algum momento, de uma pequena semente. No início parece destinada a secar, sucumbir no chão árido de platitudes assentadas e há muito cristalizadas. Mas, contra várias expectativas, adubada pelo sonho que teima em não morrer, ela frutifica na fertilidade de corações e mentes exauridos na sombra da perene ausência de perspectiva. E culmina com o assomar, à plena luz, do fruto exuberante: a liberdade conquistada.
Um dos maiores tormentos do Brasil tem sido a opressão social e econômica. Resultado de séculos de dominação implacável por parte de uma elite desprovida de  escrúpulos, sensibilidade ou compaixão, ela produziu, num país riquíssimo, em termos de distribuição de renda, riqueza e oportunidades, uma situação de desigualdade e injustiça que se inclui entre as mais perversas de todo o globo terrestre.
Executada de forma cruel, tenaz e competente, tal dominação atingiu, com repugnante sucesso, e em vários aspectos, o objetivo de persuadir o oprimido de que este deveria ser o seu destino.
E fechou-se o círculo.
Ocorreu, porém, um paradoxo, que, de alguma forma, fez com que o processo eventualmente se voltasse contra seu próprio criador.
Alguns dos excluídos, mesmo julgando pertencer inexoravelmente a uma sub-classe que jamais será alcançada por nenhum tipo de atenção pública, mesmo convencidos de que tal situação é a única possível, nem por isso se conformam com ela. E optam pela revolta violenta.
Despojados de toda a esperança, e ao mesmo tempo atiçados por uma cultura de consumo voraz e materialista, solucionam essa contradição no crime.
E com isso apavoram a elite privilegiada e opressora.
A reação desta, que não tarda, é coerente com toda a sua história. Quer pagar violência com violência. Clama por mais opressão, por mais dureza. E se utiliza, nessa busca, outra vez, de todos os meios que o poder lhe disponibiliza.
As estatísticas dizem, sem contestação, que a esmagadora maioria dos crimes letais no Brasil não só vitimizam mas também são praticados por homens, entre 16 e 25 anos, pobres, pretos ou pardos. Na disputa estabanada por espaço, identidade e pertencimento na única via que lhes resta, os oprimidos matam-se entre si. Enquanto esse fenômeno ocorre massiva e diuturnamente, nenhum clamor público se vê. Ocupa, mal e mal, algumas linhas nas páginas policiais sensacionalistas, sedentas de sangue.
Experimente um desses criminosos, porém, vitimar um jovem da mesma idade, mas de classe média alta. Conhecer-se-á, então, o poder da “opinião pública” (na verdade a opinião do opressor) na busca de vingança. Redução de maioridade penal, aumento das penas, fim da progressão delas, são os temas recorrentes. Pior, são tidos como verdadeiras panacéias. Em uma palavra, mais cadeia, mais castigo para o oprimido que ousa se rebelar.
            Violência, porém, como se sabe, só gera mais violência.
            A perpetuação da lógica da opressão, por um lado, eterniza a injustiça, que é ainda mais perversa por ser desnecessária, em um País tão rico; e, por outro, infla a espiral da violência, transformando-a em um flagelo sem fim.
            Daí a necessidade de buscar a sua reversão.
            Em São José dos Pinhais, estamos convencidos de que o primeiro passo consiste em lançar um raio de luz na consciência do oprimido, no sentido de desconstruir aquele convencimento artificial que tão solidamente foi lá instalado.
            Não, ele não é um cidadão de segunda classe. Sim, ele tem tanto direito a receber atenção da sociedade e do poder público quanto todos os demais. Não, sua situação de desesperança não é um desígnio divino intocável. Sim, ele tem valor para si próprio, para sua família, para seu grupo social, para seu Município e para sua Nação.
            Essa, a nosso ver, a semente a ser lançada.
            De seu enraizamento no solo do tecido social fragilizado poderá nascer o encadeamento natural de circunstâncias capazes de dar corpo a um movimento que, em seu ponto culminante, desemboque na consolidação da cultura da paz.
            Recuperar a auto-estima das pessoas, devolver-lhes, mas em outro viés, identidade, sensação de pertencimento e valorização, proporcionar-lhes objetivos morais, emocionais, materiais – por que não?
            Perspectiva de vida digna. Cidadania.
            Em São José dos Pinhais, o Prefeito Ivan Rodrigues entendeu, desde o primeiro dia de sua gestão, que esses são deveres do Poder Público e da própria sociedade para com as comunidades social e economicamente fragilizadas. E isso não em uma perspectiva meramente filantrópica ou mesmo apenas solidária, mas decorrente de percepção política e até mesmo ampla e profundamente ideológica.
            Compreendeu que esse é o caminho para extinguir a lógica da opressão, atingindo em cheio, com isso, a injustiça como um todo, e conseguindo ainda o magnífico efeito colateral de ferir de morte, em seu nascedouro, a principal semente da violência e da criminalidade endêmicas.
            E traçar esse caminho como prioridade decorre de uma compreensão ainda mais abrangente acerca da própria finalidade precípua do Estado como gestor dos direitos e interesses de todos os seus cidadãos, e não apenas da minoria privilegiada, como sói ocorrer em nossas plagas.
            É preciso, neste passo, frisar que não nos seduzem as receitas mágicas, as ideias miraculosas, as soluções prontas. Não costumam funcionar. Por isso, cabe chamar a atenção para a palavra reiteradamente utilizada: caminho. Sabemo-lo árduo, tortuoso e longo. E temos consciência de que estamos apenas em seu início.
            No entanto, ele tem sido animador.
            Em verdade, a semente já foi lançada.
            E a julgar pelos primeiros sinais, frutificará com força.
            “Mulheres da Paz” é um exemplo. Talvez o mais significativo, até aqui.
            Penso que tudo o que as pessoas verão no presente livro representa a demonstração concreta, poderosa, pujante, daquilo que acima procurei expor.
            Nesses meses em que, juntamente com outros tantos projetos e ações, trabalhamos ombro a ombro com as Mulheres da Paz, aprendemos com essas heroínas muito mais do que ensinamos. E vimos desabrochar perante nossos olhos deslumbrados um processo maravilhoso e incontrolável de criação e afirmação de cidadania, de cuja dimensão e desdobramentos eu, pelo menos, jamais poderia haver suspeitado.
            Não preciso me alongar esmiuçando-o. Ele está todo aqui, à vista dos leitores, em imagens e textos.
            Desconfio inclusive, com emocionada sinceridade, que ele já se mostra irreversível.
            Confio, com romântica esperança, que provoque, ao final, o rompimento do círculo da opressão.
            E que, com a libertação do oprimido, a conquista da igualdade e a volta da esperança, possa devolver a paz não apenas a este, mas também ao próprio opressor.

domingo, 29 de abril de 2012

Meu Ponto de Vista - 6 - Diplomas (Parte I)


Dia 26 de abril foi um dia universitário.
O Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, decretou a constitucionalidade do sistema de cotas raciais para acesso ao ensino superior.
E o Governador do Paraná, Beto Richa, declarou-se contrário à exigência de diploma de terceiro grau para policiais.
Aparentemente desconexos, a meu ver os dois temas tem tudo a ver um com o outro.
Ambos são polêmicos. E despertam posições opostas e apaixonadas.
Como a maioria, tenho as minhas.
Nestes dias tenho visto que alguns utilizam situações particulares para justificar seus pontos de vista a respeito desses temas. Acho inapropriado. A meu ver, eles só podem ser analisados a partir de uma abordagem coletiva.
Li na internet um comentário contrário à decisão do STF. Foi postado por um cidadão que diz ter nascido negro e pobre, e que hoje, pós-graduado, está bem situado na vida. Venceu por seus próprios méritos, bem como de seus pais, que de tudo fizeram para mantê-lo disciplinado e na escola.
Baseado em sua experiência própria, sente-se autorizado a afirmar que é tudo uma questão de força de vontade.
Por outro lado, alguns defensores da posição do nosso governador asseveram que são vários os exemplos de bons profissionais, em diversas áreas, que não são formados em curso superior.
Discordo, com todo o respeito, em ambos os casos.
Os dois temas em discussão configuram políticas públicas. E, como tal, devem ter em mente a situação global, expressada em diagnóstico geral, estatísticas, indicadores.
Nosso amigo pós-graduado personifica uma exceção. E a verdade é que as exceções, ainda que louváveis, não podem pautar a concepção das políticas públicas.
Do ponto de vista destas, o que vale é uma verdade intransponível, contida, aliás, em um dos votos dos ministros da Suprema Corte.
Basta olharmos o número de brancos nos cargos de mando, tanto na administração pública quanto na iniciativa privada, e, no outro lado, o número de negros e pardos nas penitenciárias, para conhecermos a realidade.
Eis, em uma frase o diagnóstico.
Terrível, indesmentível, escancarado, não exige nenhum acréscimo.
Nos termos colocados pelo nosso argumentador, seríamos forçados a concluir que os brancos possuem muito mais força de vontade do que os negros, e ponto final. Smples assim.
À parte sua natureza primariamente racista, que já bastaria para atirá-la ao lixo, essa conclusão simplesmente ignoraria de forma completa a história do Brasil. Qualquer pessoa bem intencionada que examinar a realidade atual, sob essa luz, bem como da sociologia, da antropologia, e de outras ciências sociais e humanas, constatará a impropriedade da afirmativa.
É impossível separar o ser do seu meio. E este meio é o que ele herdou de uma sociedade branca, discriminadora, elitista, preconceituosa e excludente.
A escravidão, que durou três séculos, terminou há menos de um e meio. Imaginar que seus rastros já estejam totalmente apagados do arquétipo cultural nacional é no mínimo um atestado de ingenuidade.
Ela gerou uma enorme dívida social. E sua abolição, longe de pagar esse débito, apenas o empurrou para debaixo do tapete, deixando os escravos libertos inteiramente à deriva, sem qualquer assistência.
Ignorando por completo que eram analfabetos, miseráveis e, mais que tudo, completamente inaptos para o enfrentamento das realidades competitivas da vida em liberdade, até porque jamais a tinham conhecido, a sociedade da época apenas atirou-os às ruas para se virarem como pudessem.
Cento e vinte e três anos depois, o resultado, ainda que já minorado, ainda está aí, visível a todos quantos possuem olhos de ver.
Mesmo porque em todo esse tempo o Brasil elitista jamais fez um único gesto destinado a acelerar o processo de correção do erro.
Isto até o surgimento das cotas em universidades.
Meros dez anos delas (um piscar de olhos, sob a perspectiva histórica) já mostraram resultados positivos. Desmentiram, inclusive, os principais argumentos dos seus opositores iniciais. Os alunos cotistas apresentam desempenho à altura dos demais – quando não melhor –, o que joga por terra a alegação de fim do princípio do mérito.
Qual mérito? O de quem sempre desfrutou das melhores oportunidades que o dinheiro pode comprar?
Ou alguém terá coragem de negar que apenas alunos de classe média para cima conseguiam estudar nas universidades mais qualificadas, as públicas, perpetuando um círculo de exclusão?
(Exceções, que certamente sempre existiram, mas são estatisticamente desprezíveis, como já disse, não contam).
Em contrapartida, os índices de desigualdade social e racial, ainda que de forma tímida, já começam a mostrar abalos. Inúmeras famílias excluídas comemoram, em todo o País, a formatura universitária do primeiro de seus membros em todos os tempos.
Teve sorte nosso amigo pós-graduado de contar com uma família estruturada, pais conscientes, e, talvez, mais de uma geração de valores morais consolidados.

                  Quantos, de sua cor e camada social, desfrutam disso? E quando não, qual sua culpa? Ou, mesmo, de sua família, desestruturada por tantas mazelas sociais de que sofremos, e que atingem quase sempre justamente essas camadas?



(continua...)

Mulheres do Povo


Formaram-se ontem, dia 28, as Mediadoras Sociais de São José dos Pinhais.
Uma festa gloriosa.
Foi o coroamento de doze meses de trabalho, de aprendizado, de luta e de um avanço imenso.
No grupo de graduandas estavam as Mulheres da Paz e as mediadoras do projeto Justiça Comunitária.
Mediante parceria da Prefeitura Municipal com o Governo Federal, através do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, o PRONASCI, essas 43 guerreiras se atiraram a uma missão lindíssima, de disseminar e fomentar a cultura da paz nas duas regiões mais violentas da cidade.
Moradoras dessas mesmas localidades, ao mesmo tempo em que saiam às ruas cadastrando famílias, levantando dados, registrando problemas, apaziguando e mediando conflitos, encaminhando pessoas à rede de proteção governamental, esclarecendo direitos, buscando soluções, espalhando a harmonia, elas passavam por um percurso sócio-formativo de capacitação que as tornou líderes e referências em suas próprias comunidades.
Hoje, concluído o curso, puderam viver o seu grande momento.
Graduaram-se com todas as honras e louvor, na presença de suas famílias, amigos e demais entes queridos, com direito a diploma, homenagens e tudo o mais.
Um momento único, e por demais gratificante.
O brilho, visível nos olhos de cada uma delas, estampava sua realização interior, a satisfação do dever cumprido, a noção de seu próprio valor, sem descuidar da expectativa de continuar um trabalho que já sabem indispensável e também irreversível.
Sua alegria era contagiante.
E não é para menos. Olhando para trás, é muito o que podem contabilizar de positivo. Antes de tudo, pela credencial inata. Sua legitimidade e credibilidade perante a comunidade é impar e insubstituível.
Munidas delas, do saber que adquiriram, e do ânimo inabalável, elas constróem ao seu redor um ambiente positivo que tende a reverter de várias formas o caldo de cultura da violência imperante na região.
Se eu fosse contar aqui todas as histórias que já ocorreram, quase não haveria espaço. Basta, porém, mencionar a conscientização.
Aos poucos, pessoas acostumadas a anos e anos de descaso e desatenção, vão percebendo que possuem direitos, e que podem – e devem – exigi-los.
O desconhecimento generalizado das funções e potencialidades dos instrumentos disponíveis na rede de proteção vai sendo eliminado, proporcionando às famílias a solução de inúmeros problemas que antes gerariam tensão.
Conflitos interpessoais são mediados e pacificados, prevenindo a ocorrência de situações potencialmente violentas.
Jovens em iminência de cair na marginalidade por falta absoluta de perspectiva são resgatados e encaminhados a cursos de formação e ao mercado de trabalho.
São ações pontuais, que combinadas entre si provocam uma ambiência diferente, mostrando uma luz de esperança a uma comunidade antes esquecida.
E trazendo de volta a ela um elemento sem o qual qualquer ser humano, individual ou coletivamente, perde totalmente a condição de sonhar: a auto-estima.
Tenho certeza de que, quando esta última estiver forte a ponto de ser generalizadamente dominante nos Territórios de Cidadania de São José dos Pinhais, teremos solucionado em grande parte o problema da violência e da criminalidade naquelas regiões.
               Parabéns, portanto, às Mediadoras Sociais de São José, legítimas mulheres do povo que, com sua coragem, desprendimento e vontade pessoal, transformaram-se nas pioneiras de uma revolução que está só começando.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

Cícero, Demóstenes e o dinheiro do povo


Os dois maiores oradores da antiguidade foram Demóstenes e Cícero. Aquele era grego, e viveu no século IV a.c. Este, romano, no século I a.c.
Cícero era senador, e sua mais famosa obra foi um conjunto de quatro discursos de acusação contra um criminoso da época, Lucius Sergius Catilina. Daí o seu nome: “As Catilinárias”.
Nelas, pronunciou aquela que talvez seja a mais célebre frase conhecida, de um discurso antigo: “Até quando, ó Catilina, abusarás de nossa paciência?” (para quem gosta no original em latim, igualmente famoso, Quosque tandem, Catilina, abutere patientia nostra?).
Vivo fosse hoje, e Cícero poderia perfeitamente voltar sua verve poderosa contra um colega seu senador, e xará de seu também colega grego, esse orador.
Quosque tandem, Demóstenes, abutere patientia nostra?
Até quando, ó Demóstenes?
Como o leitor atento certamente já percebeu, refiro-me a Demóstenes Torres, Senador desta nossa República Federativa do Brasil, pelo Estado de Goiás.
Não que o esteja prejulgando, por favor. Sou o maior adepto do contraditório e do amplo direito de defesa. E ele ainda não o exerceu na plenitude.
Na realidade, fixo-me é no rumoroso episódio que o envolve, e que, por todas as circunstâncias que o compõem, nos fornece um retrato, resumido mas completo, de uma realidade já passou da hora de o Brasil enfrentar e superar.
Claro que todos sabem, mas não custa explicitar.
Até então um dos mais respeitados parlamentares do País, defensor intransigente da ética na prática política, o Senador Demóstenes foi pego “no flagra” em relações pra lá de espúrias com Carlinhos Cachoeira, o rei da jogatina ilegal no País.
As acusações, baseadas em provas fartas e fortes, dão conta de que ele utilizava a força e a influência de seu mandato para beneficiar o bandido, de várias maneiras.
A grande pergunta, que não quer calar, consiste em saber a razão pela qual Demóstenes se sujeitava a isso.
Alguns falam em propina.
Eu, cá pra mim, não acredito.
Dia desses, ouvi uma hipótese que julgo muito mais provável.
O bom e velho “rabo preso”.
Cachoeira (Charlie Waterfall, para o New York Times) também é goiano, e tem naquele estado sua principal base de operações.
Na sua campanha para o Senado, Demóstenes recebeu dele polpuda contribuição financeira.
Vem daí a dependência.
A famosa contrapartida. Ficou devendo o favor.
Até ser descoberto, pagava-o com o dinheiro público. O nosso.
Como?
Entre outras: empregava apaniguados do cara em governos; fazia lobby no Congresso para aprovação de leis que favorecessem a jogatina; etc. Fazia o que estava ao seu alcance para a grana pública correr solta pro bolso do padrinho.
Percebem como funciona?
O político, pra se eleger, precisa de dinheiro. Muito dinheiro. Ninguém chega lá sem ele. É bobagem até mesmo tentar.
Então, pra fazer a campanha, sai à cata. Daí, “quem pode mais chora menos”.
Quem tem grana financia a campanha do candidato. Por que faria isso? Porque é bonzinho, talvez? Hein? Caridade? Filantropia? Idealismo? Fé na democracia?
Talvez. No dia em que o Sargento Garcia prender o Zorro. Ou quando o Papai Noel e o coelhinho da páscoa derem uma festa no Pólo Norte e me convidarem.
Sou mais pelo interesse. Você dá dinheiro pro cara, e com isso viabiliza que ele se eleja. Assim, ele fica te devendo a eleição (o rabo preso...). Eleito, ele ganha poder e influência. Daí, você pode cobrar a fatura, fazendo ele utilizar essas duas coisas em favor dos teus negócios e interesses.
No final, você recupera o investimento, e ainda ganha bem mais. Inclusive com sobra para uma reserva destinada à próxima eleição, claro, que ninguém é de ferro.
Essa grana quase nunca é lícita, e invariavelmente sai de sangria dos cofres públicos.
Se a gente colocar isso na escala do número de políticos eleitos a cada dois anos, e que vai usar seu mandato para defender os interesses particulares de seus padrinhos, ao invés do interesse público, que é o de todo o povo, dá pra ter uma ideia do tamanho do prejuízo.
Esse, a meu ver, é o centro do debate. A questão do Demóstenes Torres é apenas mais uma entre tantas. Só que esta veio a público. E as que não vem?
O problema, minha gente, é o modelo do financiamento das campanhas eleitorais.
Enquanto os grandes empresários deste País estiverem patrocinando campanhas milionárias que, por isso mesmo são quase sempre vencedoras, seus apadrinhados estarão utilizando o poder que conquistaram para retribuir a eles, distorcendo os processos políticos, econômicos e administrativos de maneira a que os “investimentos” eleitorais tenham retorno, ou seja, desviando o dinheiro do contribuinte para o bolso de grupos, ao invés de fazer com que ele seja melhor utilizado em benefício de todos.
A saída evidente é o financiamento público das campanhas eleitorais.
Trata-se de uma proposta que já está em discussão na Comissão Parlamentar que estuda a reforma política no Brasil. Ela é boicotada sistematicamente, claro, pelos parlamentares que sempre fizeram parte do esquemão que ela tenta fulminar. Também setores da grande imprensa não tem interesse nisso, até porque, grandes empresários que também são, costumam beneficiar-se dele igualmente.  Vai daí que lhe metem o pau, usando seu poder de fazer a cabeça de muita gente.
No entanto, essas objeções, todas elas movidas por interesses menores, não resistem um minuto a uma discussão minimamente séria.
Com o financiamento público, todas as campanhas eleitorais seriam pagas pelos cofres do governo, conforme regramento a ser definido. Ficaria terminantemente proibido, a todos os candidatos, receber qualquer quantia de dinheiro de particulares.
A crítica principal de uns é que isso seria desperdício de dinheiro público. Muito melhor é aplicar esse recurso em educação, saúde, segurança, etc.
A premissa dessa afirmação é a de que, sendo todos os políticos corruptos, por princípio, gastar dinheiro do povo com eleição é jogá-lo no esgoto.
Como se eleição não fosse um dos principais núcleos da própria democracia, a qual constitui o pilar que sustenta a qualidade dos serviços públicos! Educação, saúde, segurança, e tudo o mais, não fazem o menor sentido se não forem democráticas!
Aprimorá-la então, continuamente, é aprimorar a democracia mesma, de modo a entronizar o povo cada vez mais, e cada vez melhor, no comando de seu próprio destino.
Por outro lado, quanto mais aprimorado o processo eleitoral, mais capaz ele será de se depurar dos políticos corruptos.
            Além do mais, a insinuação é falsa. Há, sim, inúmeros políticos sérios, cuja atuação fica obscurecida por muitas razões, a principal das quais é o sensacionalismo da imprensa. Partir da premissa de que todos são corruptos significa condenar a democracia como irremediavelmente falida, o que, além de não ser verdade, só pode servir a interesses escusos e inconfessáveis. A democracia, ao contrário, está mais viva e forte do que nunca, e é o mais seguro caminho para o grande destino que está reservado ao nosso País.
Finalmente, o mais importante. Dizer que aplicar dinheiro público diretamente nesse processo significa desperdiçá-lo é um raciocínio pequeno, para dizer pouco. Em muitos casos, é mesmo mal intencionado.
Conforme vimos acima, como fartamente demonstra o caso Demóstenes, e como todos já estamos cansados de saber, o sistema atual, com financiamento privado das campanhas, custa muito mais caro aos cofres públicos!
Por princípio, o político tem o rabo preso com quem paga sua eleição.
Se for eleito com dinheiro dos tubarões, ficará preso a eles e trabalhará para eles. Vai tentar desviar para eles o dinheiro do povo.
Mas se for eleito direta e unicamente com dinheiro do contribuinte, o político só terá seu rabo preso com este, e é para ele que trabalhará. É para ele que destinará os recursos que dele são recolhidos.
É um simples raciocínio lógico.
Já está na hora de fazê-lo prevalecer.
A luta é difícil, porque os interesses e privilégios a contrariar são poderosíssimos. Seus titulares não possuem a força do argumento (porque este, me desculpem, é irrespondível), mas são mestres no uso do argumento da força (do cifrão).
Quem sabe não achamos um Cícero escondido por aí, que com o poder demolidor da oratória provoque um turbilhão irresistível?
Talvez, no futuro, alguém, evocando nosso tempo, possa mencionar, com a mesma admiração, “As Demostinárias”?
Hein? Por que não?

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Democracia do dinheiro

          Aqueles de vocês que acham que o Grande Irmão do Norte (EUA) é mesmo a maior e melhor democracia do mundo, devem assistir a três documentários feitos por cieneastas de lá mesmo, norte-americanos.
          São obras realistas, que mostram de forma irrefutável, arrasadora, como, na verdade, o que efetivamente manda, naquele País, é o dinheiro.
          Quem pode mais chora menos.
          As barbaridades que a gente vê são de deixar qualquer observador imparcial indignado. Nós, que costumamos achar ruim do Brasil, devemos ficar é orgulhosos. Estamos muitas décadas à frente daquele que é considerado um país modelo, mas que, olhado de forma crítica, não passa de um trator empenhado em esmagar de maneira implacável todos aqueles que de alguma maneira não conseguem o que para eles se define por "sucesso", ou seja, poder econômico.
          Se conseguirem, assistam:
                 1) "Capitalismo - Uma História de Amor" - de Michael Moore (deve estar disponível nas boas locadoras);
                 2)  " Trabalho Interno" ("Inside Job") - de Charles Ferguson (idem - ganhou o Oscar de melhor documentário em 2010);
                 3) "Hot Cofee" - de Suzan Saladoff (não consegui descobrir o nome em Português - está em cartaz na HBO).
          As humilhações que as pessoas passam são escabrosas. Inacreditáveis. E o modo como os poderosos fazem isso e saem livres, limpos, leves, e dando risadas, é degradante.
           Acreditem: é de deixar as nossas corrupçõezinhas dos políticos brasileiros no chinelo.
           Podem conferir.


sábado, 14 de abril de 2012

Preocupações exageradas?


            Li na imprensa do dia 13/04 duas declarações do Secretário Estadual de Segurança, Dr. Reynaldo de Almeida César.
            A primeira informa que, ao contrário do que havia sido anunciado anteriormente pelo próprio Governo, nenhuma das 10 (dez) UPSs – Unidades Paraná Seguro que serão inauguradas ainda em 2012 estará localizada no interior do Estado.
            Todas elas serão em Curitiba.
            A outra declaração, que busca explicar a anterior, diz que a forma como fazer a instalação dessas unidades fora da Capital ainda é objeto de estudos, uma vez que elas se constituem em “um projeto de cidadania, e seu sucesso depende de integração com o poder público municipal.”
            Preliminarmente, cabem duas observações.
         Uma. Toda a análise que farei a seguir partirá do princípio de que os textos acima transcritos realmente refletem as declarações do Secretário. Como disse, foram tirados de um jornal, e todos os leitores do meu blog já sabem o que penso a respeito. Nunca receba informações da grande imprensa com os dois pés à frente. Senso crítico e caldo de galinha são indispensáveis. A parte que aparece aqui entre aspas está assim também no jornal, de modo que penso ser uma citação textual. Se for, ótimo, porque é o melhor trecho da declaração. Então, se as informações acima realmente configuram o que o secretário Reynaldo disse, a minha análise se aplica. Se não, não.
            Duas. Para contextualizar. As UPSs, como todos devem lembrar, são a mais vistosa vitrine da política de segurança pública do Governo Beto Richa. A primeira delas foi inaugurada há um mês no Uberaba, em Curitiba. Quem quiser refrescar a memória sobre o que são e como funcionam, ver o post “Meu Ponto de Vista – 4 – Políticas de Segurança do Governo do Estado” – Parte II, de 07 de março de 2012, neste blog.
            Quanto às declarações do secretário propriamente ditas, confesso que me deixaram bastante preocupado.
            Antes de tudo, como gestor, exatamente na área da segurança, e na Região Metropolitana de Curitiba. Não estamos na Capital, e, portanto, estamos fora dos planos para 2012.
            Mas, como vizinhos, sofremos as conseqüências.
            A região do Uberaba onde se instalou a UPS era, até então, um dos locais mais violentos de Curitiba. Casualmente está localizada exatamente na divisa com São José dos Pinhais. Ocupada pela polícia, viu reduzidos significativamente seus índices de violência e criminalidade.
            No entanto, não foi efetuado grande número de prisões. Para onde teriam ido os criminosos?
            Pois é.
            Aqui, já estamos sentindo os efeitos.
            Com certeza, o restante da Região Metropolitana também. Se não agora, em breve, porque, conforme o mesmo jornal, as próximas UPSs serão no Tatuquara (divisa com Fazenda Rio Grande), CIC (divisa com Araucária), Cajuru (divisa com Pinhais) e Sítio Cercado.
            (Parêntesis. Por coincidência, tive que interromper a escrita desta postagem nesta parte para ver televisão, porque exatamente no mesmo momento a Rede BandNews exibiu uma matéria mostrando o aumento exponencial da criminalidade em São Gonçalo e Niterói, no Rio de Janeiro, em função da migração dos criminosos, tocados  da Capital daquele Estado pelas UPPs – Unidades de Polícia Pacificadora, dispositivo inspirador das nossas UPSs. Fecha parêntesis).
            Depois, como cidadão. É porque, com todo o respeito, embora o conceito seja absolutamente correto, a explicação absolutamente não convence.
            Esclareço: conforme já disse um pouco acima, a citação entre aspas é precisa e bastante avançada. Não se pode pensar nada, hoje, em segurança pública, sem integração das esferas de governo.
            Este o conceito. Absolutamente correto.
            Porém, o uso dele como motivo para a postergação da extensão da política governamental ao restante do Estado é um atentado à lógica mais elementar.
            Vamos precisar da ajuda da filosofia, da qual a lógica é um campo de estudo. Mas não se preocupem. É coisa de bê-a-bá. Na verdade, estamos lidando com um raciocínio absolutamente simples.
Ele tem três fases: um pressuposto, um desdobramento e uma conclusão. Se os primeiros forem verdadeiros, a conclusão também o será, e o raciocínio recebe o nome de silogismo.
            Mas se um deles, mesmo parecendo verdadeiro, é falso, isso leva também a uma conclusão falsa. Assim, sob uma aparência totalmente verdadeira, afirmamos uma mentira. Neste caso, temos um sofisma.
            Vejamos, então, a explicação dada: 1) a instalação da UPS exige integração do Poder Público Estadual com o Poder Público Municipal (pressuposto); 2) neste momento só é possível instalar UPSs em Curitiba (desdobramento); 3) logo, ao menos neste momento, só existe integração do Poder Público Estadual com o do Município de Curitiba, e, portanto com nenhum dos outros 398 que compõe o Estado do Paraná (conclusão).
            A mim, sinceramente não convence.
            Parece-me um sofisma.
Será possível não haver integração suficiente do Estado com nenhum outro Município, além da Capital?
            Falo por São José dos Pinhais, de cujo Poder Público Municipal faço parte em nível de primeiro escalão, e exatamente na área da segurança, que é onde a integração exigida deve ocorrer.
            De nossa parte, nada, absolutamente, a impede. Antes pelo contrário. O relacionamento com a área estadual é o melhor possível, tanto no nível pessoal, quanto profissional, e, mesmo, conceitual. Além de conhecimento e respeito mútuos, possuímos absoluta identidade de pensamentos e concepção com toda a alta cúpula estadual, aí incluído o próprio Secretário e sua assessoria direta, bem como o Comando da Polícia Militar e a Chefia da Polícia Civil.
            Deles já ouvi, inclusive, que São José estará na linha de frente dos municípios que receberão UPSs.
            Qual, então, a razão verdadeira do adiamento?
            Por isso é que vejo a explicação como preocupante.
Essa preocupação, aliás, é séria a ponto de ter vergonha de dizer seu nome.
É que neste ano haverá eleição municipal. Serão escolhidos os prefeitos de todos os municípios do País.
Segundo a unanimidade dos analistas políticos, o Governador Beto Richa tem como estratégia prioritária, visando sua reeleição em 2014, contar, quando ela chegar, com um aliado na Prefeitura de Curitiba, Capital e principal colégio eleitoral do Estado.
Desta forma, e ainda pelo que se lê, ele deverá apostar todas as suas fichas na reeleição de Luciano Ducci, seu fiel escudeiro de outras batalhas, a quem inclusive expressamente já declarou apoio.
Importante: nada a opor, até aqui.
Cidadão como outro qualquer, tem o Governador pleno direito à sua opinião e ao seu voto. E se esta opinião pesa mais do que a da grande maioria no Estado, em virtude do cargo que ocupa, isto é parte do jogo democrático. Afinal, ele o ocupa pela livre vontade popular.
Pode – e, mais, até deve – utilizá-la, na campanha, como bem lhe aprouver, em apoio ao candidato de sua predileção.
O que não pode é, como gestor, submeter qualquer decisão administrativa ao critério dessa opinião.
Tais decisões, por determinação constitucional, devem ser pautadas obrigatoriamente pela impessoalidade.
O que nos traz de volta à mudança de rumo das UPSs.
Ocorreu a seguinte sucessão de fatos:
Em início de março, quando da instalação da primeira Unidade, em Curitiba, as autoridades declararam em uníssono que haveria mais dez até o final do ano, algumas delas no interior.
No início de abril foi divulgada uma pesquisa do Ibope acerca da preferência do eleitor curitibano, na qual o Prefeito Ducci aparece em 3º lugar, nada menos do que 10 (dez) pontos percentuais atrás do primeiro colocado.
Menos de uma semana depois, a imprensa noticia que todas as dez UPSs de 2012 serão em Curitiba.
No interior, só a partir de 2013 (quando, observe-se, a eleição já terá passado).
Decisão, por certo, de Governo, e não de apenas um secretário.
           Pode ter sido mera coincidência. Mas também pode ser que não.
De qualquer sorte, uma abrupta e repentina mudança. E grande. De 180 graus.
Tudo bem, se para ela houvesse uma explicação convincente.
Mas a verdade é que não houve.
A que surgiu soa extremamente falha.
Tomara, então, que a preocupação de nome proibido seja apenas um exagero imaginativo. Ou que o jornal tenha acrescentado a sua costumeira pitada de sal às declarações que coletou.
Do contrário estaremos, outra vez, diante de lamentável sobreposição de interesses privados ao interesse público, inversão ilegal e injustificável, e que tanto mal tem causado ao nosso País ao longo dos anos.
Seria uma pena.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Destruir é fácil. Já reconstruir...


Dia desses eu escrevi neste blog que o regime militar atrasou o amadurecimento político da população brasileira em pelo menos um século.
Fez isso pura e simplesmente alijando a população do processo político. Proibiu-a, sob pena de severas punições, de participar, de debater, de influir. Sequer votar, podia, para cargos com poder decisório. Em uma palavra, alienou-a.
Criou nela uma cultura na qual essa é a melhor atitude.
As conseqüências são as piores possíveis. O afastamento e a indiferença das pessoas geram a deterioração do ambiente político, e esta, por sua vez, as afasta ainda mais.
Hoje, com a democracia restaurada, reverter isso é uma tarefa hercúlea. Trata-se, não menos, de reconquistar corações e mentes!
E estamos apenas no início.
Pois bem. A ditadura fez ainda mais. Atrasou também, e por décadas, o próprio desenvolvimento do país, no que diz respeito à justiça social, à participação da grande maioria de sua população nos benefícios gerados pela imensa riqueza com a qual ele foi dotado.
Estou lendo, neste momento, a biografia de João Goulart, o Presidente da República que foi deposto pelos generais, auxiliados por uma elite civil retrógrada, quando do golpe que instaurou a ditadura.
Escrita pelo historiador Jorge Ferreira e publicada pela Editora Civilização Brasileira, é uma obra magnífica que busca – e consegue, brilhantemente – romper uma espécie de casulo virtual, no qual o imaginário brasileiro aprisionou o personagem, reduzindo toda sua rica trajetória ao último e triste episódio.
Fico sabendo que no dia 6 de março de 1964, 26 dias antes de sua deposição, Jango fez um discurso no qual, entre outras coisas, disse o seguinte: “A paz que nós desejamos não é apenas a que aparece nas ruas asfaltadas, mas a que leve a justiça social aos nossos caboclos do interior, que entre no lar humilde dos trabalhadores, e incorpore todo o povo à sociedade que todos nós desejamos, à sociedade cristã de um país livre e independente. (...) O que nós desejamos com essas reformas é integrar na sociedade brasileira mais de quarenta milhões de irmãos nossos, também, brasileiros, que precisam participar da vida de seu país e da riqueza nacional.”[1]
Soa familiar?
Pois é.
Isto é exatamente o que estamos todos empenhados em fazer hoje.
As maiores vitórias que o Brasil tem alcançado nos últimos anos são exatamente fazer com que um número significativo de brasileiros saiam da miséria absoluta. Ou seja, que se incorporem à sociedade, que participem da riqueza nacional.
Somos hoje respeitados, inclusive internacionalmente, em razão de estarmos conseguindo diminuir de forma visível a desigualdade social.
 De lambuja, ganhamos solidez em nossa economia, porque estamos conseguindo inserir nela grandes quantidades de pessoas.
E conseguimos atravessar razoavelmente ilesos graves crises mundiais.
No longo prazo, isso tudo vai se refletir positivamente em inúmeros setores da vida nacional. Inclusive, e principalmente, na segurança pública, tema ao qual tenho me dedicado com um pouco mais de afinco nos últimos anos.
Já pensou onde estaríamos hoje, nesse processo, se o tivéssemos iniciado quarenta anos antes, como queria Goulart?
Infelizmente, não foi possível.
A quebra do regime democrático calou a voz do povo, revigorou e manteve, com mão de ferro, as relações econômicas e sociais vigentes até então, aprofundando e alargando, de maneira inédita, o abismo de injustiça que separa os privilegiados dos oprimidos, em nosso País.
              O preço estamos todos pagando agora.


[1] O trecho está na página 411, e os grifos são meus.