Está quente o debate, no Brasil, sobre a questão da redução da
maioridade penal.
Como sempre, ele se dá de uma forma maniqueísta, polarizada. Não há
meios-termos. Só paixões.
Eu, como sempre, tenho uma posição definida a respeito, e, também
como sempre, morro de vontade de expor essa posição aqui, publicamente.
E isso faz tempo. Vem desde que a discussão começou. Mas tem tanta
gente, falando tanta coisa, em tantos meios, que parece que já está tudo dito.
Então eu achei melhor me conter. E tenho resistido, bravamente. Mas agora começou
a acontecer algo que muda tudo. Então, não tem mais jeito. Preciso dizer de uma
vez:
Sou contra a redução da maioridade penal. Total e absolutamente
contra.
Pronto. Disse.
Agora, naturalmente, devo explicar por que penso assim.
Mas não vou fazê-lo.
Isto porque, como já expliquei, fala-se tanto disso, por aí, que tudo
o que eu penso está exposto na internet, em vários locais, por várias pessoas.
Ora, não vejo a necessidade de repetir o que já está dito. Só publico meus
argumentos quando acredito que eles tenham alguma originalidade e que possam,
de alguma forma, acrescentar algo novo ao debate. Aqui não é o caso.
Portanto, se você é um dos meus oito ou nove leitores, e quiser
conhecer em detalhes os fundamentos da minha posição, é só buscar na web.
Procure matérias e artigos que mostram que a ideia não é boa. Está tudo
lá. Abundante. Abrangente. Variado. E, a
meu ver, irrespondível.
Então, perguntará você, por que diabos estou tomando o seu tempo com
esta publicação?
Respondo: porque o tema dela, embora relacionado à questão da
redução da maioridade penal, não é exatamente ela.
Pra variar, o que eu quero mostrar é a canalhice, o mau-caráter, a
parcialidade da nossa grande imprensa. E, desta vez, mais do que em outras, as
gravíssimas consequências que esses “predicados” podem acarretar à nossa
sociedade e, por derivação, os prejuízos que causarão ao próprio País.
A bola da vez é a Rede Bandeirantes. Televisão, rádio, tudo.
Não se engane com a força dela, só porque não é a primeira colocada
do “ranking”! Trata-se de um poderosíssimo conjunto de meios de comunicação,
capaz de agir fortemente sobre a maneira de pensar de uma parcela considerável
da sociedade brasileira.
Em outras palavras, ela tem condições de criar opinião pública, e
influenciá-la de forma decisiva.
O Brasil é um dos pouquíssimos países do mundo onde pessoas dotadas
de um poder de tal magnitude não estão sujeitos a algum tipo de controle capaz
de obrigá-las a utilizá-lo com um mínimo de honestidade.
Ou, pelo menos, de decência. Afinal, esse poder, quando usado para
distorcer realidades, pode levar a consequências tão graves quanto
imprevisíveis.
Pois é exatamente o que está acontecendo neste caso.
O dono da Rede Bandeirantes é evidentemente a favor da redução da
maioridade penal. E mais ainda, ele resolveu se transformar em um cruzado dessa
luta. Em virtude disso, e lixando-se
solenemente para qualquer escrúpulo, lança mão de todas as armas de que dispõe.
Ocorre que a mais forte destas é exatamente o seu poder de
comunicação, e conseqüente influência na mente das pessoas.
Então, minha gente, prestem atenção no que vem acontecendo de uns
tempos para cá nos programas jornalísticos dos veículos filiados àquela rede.
Todos os dias, várias vezes por dia, todos eles levam ao ar matérias
sobre o tema. Elas, invariavelmente, iniciam falando dos crimes bárbaros
praticados por menores de 18 anos. Em seguida, como se fosse um mantra, entra
em cena um pronunciamento de alguém esbravejando contra a legislação atual.
Pode ser um promotor de justiça, um juiz, um delegado de polícia, etc. Ou mesmo
um cidadão comum, catado na rua.
Os argumentos são sempre os mesmos. As posições, também. Todos
condenam o sistema com inabalável furor.
Bom.
O que tem de errado nisso (perguntará você, caro e raro leitor)?
Tudo (responderei eu). Absolutamente tudo.
Jornalismo, por definição, é a apuração e transmissão de
informações. Qualquer principiante nesse tema sabe que o primeiro dever do
jornalista é este. Informar. Pura e simplesmente fornecer a seu cliente
(leitor, ouvinte, telespectador, etc.) a verdade factual, de forma imparcial e
isenta.
O nome disso é notícia. Um fato e seus desdobramentos, cujo
conhecimento o jornalista julga ser do interesse geral da comunidade.
Paralelo ao dever de informar, existe o direito de opinar.
Quer dizer, o jornalista pode, sempre que quiser, transmitir ao seu
cliente aquilo que ele, jornalista, pensa sobre determinada notícia.
Se o
fizer de forma honesta, o cliente será cientificado, e saberá que lhe cabe
decidir soberanamente se concorda ou não com essa opinião.
E como se faz isso de forma honesta?
Simples. Todos os cursos de jornalismo, sejam acadêmicos ou vividos
na prática, ensinam que, quando vai opinar, o jornalista deve deixar isso
expresso e claro. Na imprensa escrita, isto se faz em forma de editoriais,
cujos textos todos sabem que manifestam a posição do jornal, ou em colunas de
opinião, que são sempre assinadas por seu autor.
Nos demais tipos de veículos isso se repete, com as devidas e
necessárias adaptações.
O resto é notícia. Informação pura e simples. Descrição isenta e
impessoal do fato. Em outras palavras, a verdade, que por sua vez é filha
indeclinável e intransferível da imparcialidade.
Por outro lado a sociedade, em sua dinâmica natural, tende a
refletir sobre as questões que a afetam no dia-a-dia. É absolutamente normal
que essas reflexões suscitem debates, já que a pluralidade faz parte da
essência do ser humano, e a multiplicidade de pontos-de-vista constitui uma de
suas mais fascinantes riquezas.
São os chamados “temas polêmicos”.
Claro que, justamente por interessarem a toda a coletividade, se
constituem em pauta jornalística. São notícia por excelência.
Mas um tipo específico de notícia. Aqui não se trata de simplesmente
narrar um acontecimento, apenas descrever um fato que se esgota em si próprio.
A polêmica faz parte integrante e nuclear dessa notícia.
Então, tornou-se uma prática ilustrá-la com comentários de
terceiros, não jornalistas, normalmente especialistas ou estudiosos da matéria.
O objetivo – quando honesto – é fornecer subsídios ao cliente (leitor, ouvinte,
telespectador, etc.), de modo que ele tenha melhores condições de, com
autonomia e liberdade, formar sua própria opinião.
Quando desonesto, constitui-se em um meio de tentar manipular a
consciência desse cliente, castrando-lhe a autonomia e a liberdade, e buscando
conduzir a formação de sua opinião na direção que interessa ao proprietário do
veículo de comunicação.
É muito simples e fácil passar de um modus operandi a outro. Basta deixar de lado a imparcialidade.
Esta é, segundo o mais elementar dos princípios regentes do bom
jornalismo, sua coluna mestra, seu alicerce maior e mais sólido. Como já disse,
ela é nada menos do que a mãe da verdade.
Tratar o tema polêmico com imparcialidade significa tão somente
outorgar exposição isonômica a todas as opiniões em conflito. Simples assim.
Descrito o fato, com isenção, coloca-se o tema que ele suscita; e, dada a
polêmica envolvida, que conta com bons argumentos contra e a favor, ouvem-se
pessoas de um e outro lado, cada uma delas enumerando os seus.
Este equilíbrio permite que o cliente passe a dispor de todas as
informações de que precisa para, outra vez, formar sua opinião de maneira
soberana.
Como já se disse, o jornalista tem o direito de, a qualquer momento,
reforçar com sua própria opinião, o lado da polêmica que acredita estar correto.
Deve, porém, fazê-lo de forma explícita, a fim de que o destinatário tenha
consciência de que é a isto que ele está sendo exposto.
Já tratar o tema polêmico
deixando de lado a imparcialidade é fácil. Basta romper o equilíbrio.
Sub-repticiamente, você repassa a tua opinião ao destinatário sem que ele se
aperceba disso. Como? Ouça um lado só.
A receita é bem simples. Dê a notícia. Se possível, exagere nos
tons, enfatize o aspecto dela que mais sensibiliza para o teu próprio ponto de
vista. Depois, adorne-a com quantos comentários achar conveniente, todos eles
pronunciados por pessoas dotadas de algum tipo de autoridade para fazê-lo. E,
claro, todos eles defendendo o teu ponto de vista que, afinal, é aquele que
você quer que o cliente adote.
Pronto. Sua tentativa de
manipulação está completa. Você passou ao cliente a noção – totalmente falsa –
de que aquele entendimento é unânime, pelo menos entre quem entende do assunto
e tem responsabilidade. Simplesmente não há ninguém, em seu juízo perfeito, que
pense o contrário.
Com isso você o induziu a acreditar que a sua própria opinião é a única que
merece ser levada em consideração. E, o que é pior, a fazê-lo inadvertidamente.
De cambulhada, como que colocando a cereja no bolo, você terá
sepultado definitivamente qualquer fiapo de bom jornalismo.
Repita o procedimento à vontade. Quanto mais vezes você o fizer,
maior será o número de pessoas atingidas, e mais consolidada ficará a distorção
na consciência daqueles que já o foram anteriormente.
Pois então muito bem.
Agora, minha gente, chegou a hora de eu dar a vocês, uma informação
que, para aqueles que se limitam a observar a Rede Bandeirantes será, além de inédita, totalmente surpreendente.
Acreditem: existe uma enorme, imensa, infinita quantidade de
pessoas, neste Brasil, que é CONTRA a redução da maioridade penal!
E, o que é ainda mais surpreendente: eles são capazes de expor razões
bastante fortes que os levam a pensar assim.
Há, dentre tantos outros mais, juízes, promotores, delegados, sociólogos,
psicólogos, cientistas, intelectuais de todos os tipos e até – pasmem! – jornalistas,
muitos jornalistas, que andam por aí demonstrando de maneira muito convincente,
que a medida não resolveria nada!
Seus argumentos são sólidos, lógicos, fortes e bem estruturados. Apóiam-se
em fatos, indicadores e números.
Então, meu caro e raro leitor, o mínimo que os meios de comunicação devem
a você (e a todo o povo brasileiro, aliás) é um acesso a esses argumentos que
seja idêntico ao que eles lhe dão aos outros, que defendem a posição contrária.
Você terá sabido, então de forma leal e imparcial (portanto
verdadeira), que há boas razões embasando os dois lados, e que há
especialistas, técnicos e mesmo pessoas do povo capazes de defender, com igual
vigor e força de convencimento, ambas as posições.
Quais, dentre essas razões, são as corretas, a seu ver, cabe a você
decidir.
Você poderá fazê-lo com base em elementos, informações e subsídios
suficientes, honestos e corretos.
No caso da redução da maioridade penal, a Rede Bandeirantes não está
fazendo isso.
Todos os dias, várias vezes por dia, todos os seus veículos de
comunicação (rádios e TV, principalmente) seguem religiosamente a receita fraudulenta
que eu dei acima. Veiculam notícias de crimes cometidos por pessoas entre 16 e
18 anos. O espaço que dão a isso é amplamente desproporcional, em relação ao número
total de crimes, criando em você outra impressão falsa. Fazem parecer que esse
tipo de delito, que na realidade é estatisticamente insignificante, é muito
mais freqüente do que de fato é.
Em seguida mostram, com requintes de cínico sadismo, a barbárie de
tais crimes, de forma a, nada sutilmente, despertar a tua repulsa. Pronto. Eis o terreno preparado para o fecho triunfal. A transmissão será inundada,
literalmente inundada, de pronunciamentos de terceiros, todos eles unânimes em defender
furiosamente a redução da maioridade penal como a grande panacéia que vai
resolver o drama da segurança pública no Brasil.
O outro lado? Bom, este que se lixe. Afinal, não lhes interessa que
você o conheça.
O que querem é ganhá-lo para a posição deles. Com isso, podem engendrar
e fortalecer seu próximo passo. E qual é? Já está aí, para quem quiser ver. Esbravejam
que a “opinião pública” (a mesma que eles construíram e manipularam com
requintada má-fé) está do lado deles. Com isso, ganham força para implementá-la,
sob o argumento de que, sendo majoritária, é mais democrática.
Mas não é. Qualquer medida adotada por uma sociedade após um debate
viciado carregará esse vício em seu ventre. Os danos são grandes, duradouros e
dificílimos de reverter.
Você?
Você foi enganado e nem percebeu.