quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A Doença, o Tratamento e a Omissão

O Brasil vem apresentando reconhecidos avanços sociais nos últimos anos. A terrível exceção é a segurança pública, que só piora.
A saúde está ainda longe do desejável, mas vem melhorando. E foi alvo de medida estrutural inovadora, que aumentou drasticamente a presença de médicos nos postos distantes dos grandes centros urbanos.
O mesmo se vê na educação, que agora vê aprovado o seu Plano Nacional, com enormes avanços, alguns também radicalmente inovadores.
E virão, para esses dois setores, investimentos bilionários oriundos do petróleo do pré-sal.
Isso é totalmente correto. São temas de prioridade absoluta. Há grandes progressos também em vários outros.
A epidemia de violência que assola o País é igualmente uma prioridade urgentíssima. Muitos brasileiros a colocam como sua primeira preocupação.
A segurança pública é a única área cuja regulação constitucional em 1988 manteve intacta a herança da ditadura. Daí que seus paradigmas vigentes são os mais anacrônicos e incompatíveis com o Brasil – e o mundo! – de hoje.
Porém, exatamente nessa área não existe inovação à vista.
É clichê mas é verdadeiro: os índices são de uma guerra civil. E se agravam todo dia.
Mas, quando se trata de encontrar um caminho para reverter isso, tudo o que se vê é a repetição das mesmas medidas de sempre, que jamais deram resultado algum. Mais do mesmo! Talvez com outro nome, outra cor, mas sempre o mesmo.
Ora, não se pode colher laranjas plantando maçãs!
O momento é de eleição. Costuma-se associar segurança pública ao governo dos Estados. Isso porque são eles que comandam as polícias; e o senso comum, de forma equivocada, resume a questão a elas.
Todos os aspectos envolvidos na (in)segurança pública carecem de uma abordagem inovadora. Algo que seja diferente do que até aqui se fez, sem resultado.
Mas fiquemos apenas em um deles: a polícia. Isto porque estamos hoje em plena campanha para escolher quem será o(a) seu(sua) chefe a partir de janeiro próximo.
Segundo pesquisas recentes, quase ninguém no Brasil confia na polícia. Mas já sabíamos disso. Constatamo-lo simplesmente conversando com as pessoas que nos rodeiam.
O nosso modelo policial é ineficiente, ineficaz e improdutivo. É ao mesmo tempo vítima e cúmplice de uma absurda cultura da violência, que estimula o confronto físico como método de resolução de conflitos e pacificação social.
Ele ajuda a fechar o círculo vicioso que nos vitima a todos. Não importa mais saber onde começou, mas que esse começo – uma violência qualquer – recebeu uma retaliação da mesma natureza, a qual foi seguida de outra, gerando uma espiral sem fim.
Interromper esta última, e assim desativá-la, não é necessariamente um interesse de quem se encontra do lado de lá da lei. Mas é, com absoluta certeza, interesse da sociedade.
A única alternativa à cultura da violência é a cultura da paz.
Cumpre a nós, portanto, tomar a iniciativa de romper o círculo no qual violência só gera mais violência, e iniciar, efetivamente, o da cultura da paz.
Cabe lembrar que a polícia é o órgão constituído por essa mesma sociedade justamente para isso: induzir a paz pela resolução dos conflitos.
Mas, hoje tão falada, a cultura da paz não passará de um conceito vazio enquanto a polícia agir, como hoje o faz, exatamente em sentido oposto. E, pior, menosprezá-la, entendê-la como inaceitável demonstração de fraqueza.
Esse nosso modelo policial, herdado da ditadura, é único no mundo. Uma jabuticaba. Só tem aqui.
Nele é impossível a um profissional iniciar por baixo e chegar ao topo. Isso vai contra o bom senso vigente em qualquer organismo (público ou privado) em todo o mundo! No caminho, os melhores, claro, se desmotivam e vão embora. E quem comanda nunca trabalhou na base.
Nele, a função policial – investigativa, na essência – se mistura com atribuições jurídicas, gerando profissionais que não são nem uma coisa e nem outra, mas que comandam policiais que muitas vezes já exerciam sua profissão antes mesmo de eles nascerem! E a investigação propriamente dita termina por se transformar em burocracia e papelório. Ao invés de operacional, é ineficientemente cartorial.
Nele, há uma polícia – cuja função, em qualquer país civilizado, é a de pacificar conflitos – concebida, criada e treinada para a guerra! Uma polícia que copia o exército e, portanto, é incapaz de ver na população seu cliente, seu criador, o destinatário de seu serviço, mas sim um inimigo a derrotar. E, condicionada pela cultura da ditadura e pela doutrina militar, faz isso com enorme convicção! Uma polícia na qual a humilhação da base pela cúpula é a regra, que essa base, natural e inevitavelmente, tende a reproduzir no contato com a comunidade.
Nele existem duas polícias, cada uma encarregada de metade de um mesmo trabalho. Elas, como nem poderia deixar de ser, não conseguem trabalhar em conjunto. Competem entre si Brasil afora. Não se gostam nem se respeitam.  Desprezam-se.
E dentro de cada uma delas a cúpula despreza a base e é por esta odiada.
Como esperar que a tarefa única da qual são encarregadas seja bem executada?
Nossa polícia é, portanto, criminógena. Não apenas não combate efetivamente a criminalidade, contribuindo para a queda dos seus índices, como ainda atua em sentido contrário; ou seja, pela prática sistemática da violência, como método de combate à própria violência, ela colabora para o seu agravamento.
Esse é o círculo que a nós, sociedade, compete romper. É nossa tarefa tomar a iniciativa, impor medidas radicais, inovadoras, que desativem esse mecanismo perverso. Até porque somos nós, a sociedade, quem originariamente outorga à polícia o poder do uso da força. Mas para nos proteger, não para nos atacar! Para fazê-lo de modo legal, ponderado, racional! E não arbitrário, ilegal, ilimitado, como infelizmente se tornou comum.
O Estado e, nele, os Governadores, representam formalmente a sociedade. Os aspirantes ao cargo estão agora mesmo aí, nas ruas, a apregoar isso. Um deles vai conseguir. E vai comandar as polícias. Em nosso nome.
Pois bem. Eis essa sociedade:
Quase ninguém confia na polícia. Há, inclusive, um grande número de pessoas que não gostam da polícia.
Mais de 70% dos policiais militares de base são a favor da desmilitarização da PM. Aproxima-se de 100% o número de policiais civis, não delegados, contrários ao modelo cartorial de seu trabalho. Ora, há muito mais policiais nas bases do que nas cúpulas.
Entre eles é também esmagadora a maioria favorável a uma polícia única, civil, de ciclo completo, e com carreira única.
Tudo ao contrário do que é.
Os maiores estudiosos do Brasil no tema, mesmo quando filiados a correntes políticas distintas, pensam da mesma forma. E já o manifestaram publicamente, mais de uma vez.
Há um consenso, portanto, entre leigos, técnicos e acadêmicos: são necessárias – não apenas na polícia, mas também na polícia – reformas radicais, estruturais. Corajosas. Inovadoras. Como as tantas que vêm pautando outros temas no Brasil, os quais, por isso mesmo, avançam, ao contrário deste, que só recua.
No entanto, o que dizem os que, com mais chance, pretendem representar a sociedade no Governo do Estado do Paraná, quando se trata de segurança pública?
Beto Richa : "Reforço ainda maior da Segurança, com aumento do efetivo e sua valorização, reestruturação de unidades e uso intenso de inteligência" (disponível aqui).
Gleisi Hofmann: "Integrar ações das instituições de segurança. Funcionamento 24 horas de delegacias ligadas a sistemas de câmara/rastreamento/informação" (disponível aqui).
Roberto Requião: "Construir novas penitenciárias e delegacias, investir no policiamento comunitário, investir em inteligência e reequipar as Polícias" (disponível aqui).
Cadê a reforma, tão necessária, e tão desejada? Cadê ao menos a coragem de falar em medidas mais estruturais?
A sociedade anseia por elas. Os operadores de segurança e os estudiosos, também. Então, com certeza a omissão não pode se dever a receio de prejuízo eleitoral. A que atribuí-la, então?
Com todo o respeito, as propostas enumeradas são um repertório de generalidades, de superficialidades. Repetições que já cansaram de se provar inócuas. Parece que os candidatos não se deram conta de que existe uma emergência que atinge as pessoas no que possuem de mais valioso, e, por isso, as aflige e desespera todos os dias. Um problema tão grande que a rigor empalidece de forma significativa todos os avanços obtidos pelo País em outras áreas.
Na África, diante da gravidade representada pela atual erupção do vírus Ebola, a Organização Mundial da Saúde tomou uma medida inédita em toda a sua história, e absolutamente contrária às suas normas mais rigorosas: autorizou o uso de medicamentos experimentais ainda não suficientemente testados. Para crises extraordinárias, soluções extraordinárias.
Guardadas as devidas proporções, a epidemia de violência é o Ebola brasileiro. Mas a depender dos nossos principais candidatos a Governador, ele será tratado com aspirina.

domingo, 4 de maio de 2014

O Brasil, o Mundo e a Visão Embaçada

A crise europeia continua grassando. O mais recente de seus desdobramentos é o despejo em massa de famílias, de suas casas.
As informações a seguir estão na revista Caros Amigos deste mês, com remissão às respectivas fontes.
Segundo a Fundação Abbé Pierre (http://www.fondation-abbe-pierre.fr/) 130.000 mil pessoas vivem nas ruas de Paris, e 3.600.000 outras vivem, também na capital francesa, mal instaladas em moradias precárias ou insalubres. Da mesma fonte vem a informação de que o número de desalojados por inadimplência subiu muito em 10 anos (81.000 pessoas em 2001 contra 115.000 em 2012) e que o de expulsos de suas casas pela polícia dobrou (6.000 em 2001 para 13.000 em 2012) no mesmo período.
Já a ONG Droit Au Logement (droitaulogement.org), cujo objetivo é realocar essas pessoas, informa que os desabrigados são majoritariamente estrangeiros pobres, mas está subindo constantemente o número de integrantes da própria classe média francesa que a procuram porque estão perdendo suas casas.
Isso na Europa do Primeiríssimo Mundo.
Enquanto lá, modelo da gestão do “pensamento único”, economia “moderna” (quer dizer, neoliberal), a preocupação habitacional já está se ampliando para além dos pobres, atingindo a classe média, aqui no nosso quintalzinho tupiniquim, com gestão “atrasada”, “equivocada”, etc., percorre-se caminho inverso.
No Brasil, pela primeira vez em sua história, o pobre está tendo acesso a esse bem fundamental.
Milhões de famílias que jamais poderiam sequer sonhar com a ideia da casa própria estão recebendo suas chaves todos os dias.
Pronto. Eis, de forma simples e até simplória, mais uma diferença fundamental entre os que querem governar rebaixando o salário mínimo, tomando medidas “impopulares” (contra o povo, os pobres), e vendendo o patrimônio nacional em nome de uma “eficiência” que nunca vem, e um projeto que prioriza e beneficia quem mais precisa sem abrir mão do pleno emprego, do crescimento sustentável, da melhoria da qualidade de vida de todos.
Para a crise da Europa adotaram-se as chamadas medidas ortodoxas ditadas pelo FMI e pelas grandes economias (e que nada mais são do que as famigeradas “medidas impopulares” já anunciadas pelos nossos neoliberais que querem trazer de volta o passado travestido de futuro). O filme, que já vimos, lá como aqui leva sempre ao mesmo final, até porque, como sempre tenho dito, não se podem esperar resultados diferentes para as mesmas atitudes. Desemprego altíssimo, explosão dos preços de produtos básicos, perda de poder aquisitivo, etc. Tudo para quem? Claro, para os trabalhadores, para os mais pobres. Chega-se até as classes médias, como visto. Todos estes empobrecem. Os ricos? Os privilegiados? Não, estes são sempre inatingíveis.
Portugal, Espanha, Grécia e Itália já sucumbiram. Agora parece que a bola da vez é a França.
E nós aqui, com desemprego baixíssimo, inflação controlada, salário valorizado, milhões que nunca tiveram acesso a um médico sendo atendidos, centenas de milhares de jovens carentes indo estudar no exterior, milhões deles tendo pela primeira vez acesso a ensino profissionalizante e ensino superior, milhões de famílias pobres acessando moradia própria, e a economia crescendo (abaixo do necessário, mas crescendo), é que somos os bobalhões, pra essa gente vesga que se sujeita a lavagens cerebrais diárias.
Na Europa camadas cada vez mais altas estão sendo rebaixadas à pobreza e à
 miséria, enquanto aqui dezenas de milhões fazem o caminho inverso. E nós é que somos os bobalhões.
Tem ainda coisas erradas, é verdade. Acho, por exemplo que tivemos um retrocesso inexplicável, nos últimos anos, na segurança pública. É a minha área, e uma das mais sensíveis questões a afligir os brasileiros. Trata-se de tema que exige decisões estruturais profundas, dependentes de uma vontade política forte para enfrentar lobbys e problemas seculares. Sem isso a situação só faz piorar, abrindo um evidente flanco de vulnerabilidade a todo o conjunto de políticas públicas inclusivas que tanto tem beneficiado o País na última década.
Vejo, portanto, que é necessário batalhar pelo avanço real nessa área. Assim como também na da reforma política, sem a qual esse sistema representativo esquizofrênico, que nos brinda com um regime presidencialista e uma constituição parlamentarista, que distorce a representação por critérios de curral implantados na época da ditadura, e que faz qualquer governo depender de alianças espúrias para implementar minimamente sua agenda, permanecerá intocado e atrasando nossa evolução.
Carecemos ainda de uma profunda reforma tributária, mas tenho certeza de que esta só poderá entrar em debate após a anterior.
Há o que mudar, sem dúvida. Há o que consertar. Há o que melhorar. No entanto, com certeza absoluta, não é o foco. Este está provado que está correto.

sexta-feira, 14 de março de 2014

A lógica da opressão e o fruto da semente

Tempos atrás, por ocasião do lançamento de um livro que resumia as atividades desenvolvidas dentro do projeto Mulheres da Paz, em São José dos Pinhais, elaborei o texto abaixo. Agora, por diversas razões, achei que deveria torná-lo público na internet.

"Em qualquer lugar, a qualquer tempo, e sob qualquer forma, a opressão repousa em uma lógica tão cruel quanto difícil de desconstruir: o privilégio é companheiro inseparável do poder. Um não existe sem o outro.
A combinação de ambos constrói um mecanismo quase indestrutível, cujo funcionamento se destina a perpetuar o primeiro pelo exercício constante do segundo.
Quem possui o poder desfruta de condições variadas e virtualmente infinitas de conservar as situações do modo como melhor lhe favoreça.
Nos dias de hoje isso inclui, por suposto, a utilização permanente, a serviço dos interesses do opressor, de meios informativos e culturais massivos, de quantidade e intensidade tais que são capazes de impor ao conjunto do meio social, como se consenso fosse, a noção plena e inquestionável de que esse estado de coisas é o que melhor convém a todos. E, mais ainda, que fora dele só pode haver o caos. Pode-se fazer isso de forma violenta ou pacífica, conforme o tempo, o lugar ou as circunstâncias da opressão em causa.
O ápice da eficácia do círculo se dá exatamente quando dessa suposta verdade imutável, forjada pelo opressor, se deixa convencer o oprimido.
A partir desse momento, instalou-se a dinâmica do absurdo. Defensores de interesses opostos passam a ocupar a mesma trincheira, aliados, batendo-se pela causa de apenas um deles.
Ao outro, iludido, enganado, resta tão somente a desesperança.
Contenta-se com o ruim, convencido de que qualquer alternativa é ainda pior.
Exemplos desse processo têm sido incontáveis ao longo da grande e fascinante aventura do ser humano sobre a face do nosso planeta.
Felizmente, porém, em vários momentos dela ocorrem, em contraponto, casos de rompimento dessa corrente infernal, com a libertação e redenção de oprimidos de todos os tipos, pelo alcance da igualdade.
Esses movimentos vem sendo cada vez mais freqüentes. Quase sempre se iniciam com o lançamento por alguém, em algum momento, de uma pequena semente. No início parece destinada a secar, sucumbir no chão árido de platitudes assentadas e há muito cristalizadas. Mas, contra várias expectativas, adubada pelo sonho que teima em não morrer, ela frutifica na fertilidade de corações e mentes exauridos na sombra da perene ausência de perspectiva. E culmina com o assomar, à plena luz, do fruto exuberante: a liberdade conquistada.
Um dos maiores tormentos do Brasil tem sido a opressão social e econômica. Resultado de séculos de dominação implacável por parte de uma elite desprovida de  escrúpulos, sensibilidade ou compaixão, ela produziu, num país riquíssimo, em termos de distribuição de renda, riqueza e oportunidades, uma situação de desigualdade e injustiça que se inclui entre as mais perversas de todo o globo terrestre.
Executada de forma cruel, tenaz e competente, tal dominação atingiu, com repugnante sucesso, e em vários aspectos, o objetivo de persuadir o oprimido de que este deveria ser o seu destino.
E fechou-se o círculo.
Ocorreu, porém, um paradoxo, que, de alguma forma, fez com que o processo eventualmente se voltasse contra seu próprio criador.
Alguns dos excluídos, mesmo julgando pertencer inexoravelmente a uma sub-classe que jamais será alcançada por nenhum tipo de atenção pública, mesmo convencidos de que tal situação é a única possível, nem por isso se conformam com ela. E optam pela revolta violenta.
Despojados de toda a esperança, e ao mesmo tempo atiçados por uma cultura de consumo voraz e materialista, solucionam essa contradição no crime.
E com isso apavoram a elite privilegiada e opressora.
A reação desta, que não tarda, é coerente com toda a sua história. Quer pagar violência com violência. Clama por mais opressão, por mais dureza. E se utiliza, nessa busca, outra vez, de todos os meios que o poder lhe disponibiliza.
As estatísticas dizem, sem contestação, que a esmagadora maioria dos crimes letais no Brasil não só vitimizam mas também são praticados por homens, entre 16 e 25 anos, pobres, pretos ou pardos. Na disputa estabanada por espaço, identidade e pertencimento na única via que lhes resta, os oprimidos matam-se entre si. Enquanto esse fenômeno ocorre massiva e diuturnamente, nenhum clamor público se vê. Ocupa, mal e mal, algumas linhas nas páginas policiais sensacionalistas, sedentas de sangue.
Experimente um desses criminosos, porém, vitimar um jovem da mesma idade, mas de classe média alta. Conhecer-se-á, então, o poder da “opinião pública” (na verdade a opinião do opressor) na busca de vingança. Redução de maioridade penal, aumento das penas, fim da progressão delas, são os temas recorrentes. Pior, são tidos como verdadeiras panacéias. Em uma palavra, mais cadeia, mais castigo para o oprimido que ousa se rebelar.
            Quando adotado, esse remédio apresenta efeito, na melhor das hipóteses, nulo. A História não economiza exemplos. No Brasil, o mais ilustrativo é a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072). Editada em julho de 1990 como reação da sociedade indignada pelo bárbaro assassinato da filha de uma conhecida autora de novelas da Rede Globo, endureceu de forma severa as penas e seu regime de cumprimento, para vários delitos. Quase 22 anos depois, a criminalidade brasileira ainda não deu nenhuma mostra de reação positiva. Antes pelo contrário, como se sabe.
            A pena de morte, a mais dura de todas, jamais mostrou, em qualquer país onde é adotada, efeito capaz de reduzir os níveis de violência.
            É que esta só reproduz a ela própria. Violência só gera mais violência.
            A perpetuação da lógica da opressão, por um lado, eterniza a injustiça, que é ainda mais perversa por ser desnecessária, em um País tão rico; e, por outro, infla a espiral da violência, transformando-a em um flagelo sem fim.
            Daí a necessidade de buscar a sua reversão.
            Em São José dos Pinhais, estamos convencidos de que o primeiro passo consiste em lançar um raio de luz na consciência do oprimido, no sentido de desconstruir aquele convencimento artificial que tão solidamente foi lá instalado.
            Não, ele não é um cidadão de segunda classe. Sim, ele tem tanto direito a receber atenção da sociedade e do poder público quanto todos os demais. Não, sua situação de desesperança não é um desígnio divino intocável. Sim, ele tem valor para si próprio, para sua família, para seu grupo social, para seu Município e para sua Nação.
            Essa, a nosso ver, a semente a ser lançada.
            De seu enraizamento no solo do tecido social fragilizado poderá nascer o encadeamento natural de circunstâncias capazes de dar corpo a um movimento que, em seu ponto culminante, desemboque na consolidação da cultura da paz.
            Recuperar a auto-estima das pessoas, devolver-lhes, mas em outro viés, identidade, sensação de pertencimento e valorização, proporcionar-lhes objetivos morais, emocionais, materiais – por que não?
            Perspectiva de vida digna. Cidadania.
            Em São José dos Pinhais, o Prefeito Ivan Rodrigues entendeu, desde o primeiro dia de sua gestão, que esses são deveres do Poder Público e da própria sociedade para com as comunidades social e economicamente fragilizadas. E isso não em uma perspectiva meramente filantrópica ou mesmo apenas solidária, mas decorrente de percepção política e até mesmo ampla e profundamente ideológica.
            Compreendeu que esse é o caminho para extinguir a lógica da opressão, atingindo em cheio, com isso, a injustiça como um todo, e conseguindo ainda o magnífico efeito colateral de ferir de morte, em seu nascedouro, a principal semente da violência e da criminalidade endêmicas.
            E traçar esse caminho como prioridade decorre de uma compreensão ainda mais abrangente acerca da própria finalidade precípua do Estado como gestor dos direitos e interesses de todos os seus cidadãos, e não apenas da minoria privilegiada, como sói ocorrer em nossas plagas.
            É preciso, neste passo, frisar que não nos seduzem as receitas mágicas, as ideias miraculosas, as soluções prontas. Não costumam funcionar. Por isso, cabe chamar a atenção para a palavra reiteradamente utilizada: caminho. Sabemo-lo árduo, tortuoso e longo. E temos consciência de que estamos apenas em seu início.
            No entanto, ele tem sido animador.
            Em verdade, a semente já foi lançada.
            E a julgar pelos primeiros sinais, frutificará com força.
            “Mulheres da Paz” é um exemplo. Talvez o mais significativo, até aqui.
            Penso que tudo o que as pessoas verão no presente livro representa a demonstração concreta, poderosa, pujante, daquilo que acima procurei expor.
            Nesses meses em que, juntamente com outros tantos projetos e ações, trabalhamos ombro a ombro com as Mulheres da Paz, aprendemos com essas heroínas muito mais do que ensinamos. E vimos desabrochar perante nossos olhos deslumbrados um processo maravilhoso e incontrolável de criação e afirmação de cidadania, de cuja dimensão e desdobramentos eu, pelo menos, jamais poderia haver suspeitado.
            Não preciso me alongar esmiuçando-o. Ele está todo aqui, à vista dos leitores, em imagens e textos.
            Desconfio inclusive, com emocionada sinceridade, que ele já se mostra irreversível.
            Confio, com romântica esperança, que provoque, ao final, o rompimento do círculo da opressão.

            E que, com a libertação do oprimido, a conquista da igualdade e a volta da esperança, possa devolver a paz não apenas a este, mas também ao próprio opressor."