I.
Preâmbulo
De uns tempos para cá explodiu uma onda de
violência sem precedentes na Região Metropolitana de São Paulo.
Inúmeros assassinatos ocorrem todos os dias. Os
mortos já se contam às dezenas.
Em meio a essas mortes ressalta-se a de policiais,
em proporção absurda. Colhidos de surpresa, quase sempre fora de serviço, esses
profissionais tornaram-se alvos preferenciais da violência homicida.
A pergunta que fica no ar, intrigando a todos,
estudiosos e leigos, igualmente perturbados com o inusitado da situação, diz
respeito à razão, ou razões, que levaram a esse fenômeno macabro.
De minha parte, tenho também me indagado. E tudo o
que posso dizer em resposta é que, a meu ver, não há uma resposta. Pelo menos
não uma única.
Estamos diante de uma situação por demais complexa,
em que inúmeros são os fatores e as variáveis, de natureza social, sociológica,
cultural e mesmo econômica, a condicionar comportamentos e atitudes dos mais
variados atores.
Leviano será, portanto, aquele que se arriscar a
simplificar. Irresponsável, sem dúvida, será qualquer interpretação
maniqueísta, que divida os contendores entre bons e maus absolutos. Essa
explicação, além de não dar conta, minimamente, de esclarecer o problema, não
levará, de modo algum, à possibilidade de solucioná-lo.
Até porque nem mesmo se trata de um confronto tão
somente entre dois lados.
Não há preto, e não há branco. A conflagração em
curso envolve, isto sim, inúmeros tons de cinza.
O alcance do meu parco instrumental teórico ou
intelectual passa muito longe dessa complexidade, razão pela qual não me vejo
com as mínimas condições de entender e explicar a situação, em toda sua
amplitude. Deixo para os cientistas sociais as análises mais aprofundadas capazes
fazê-lo, e assim, quem sabe, apontar uma saída.
De minha parte, tenho apenas uma pequena
contribuição que gostaria de dar. Ela diz respeito aos papéis de alguns dos
atores dessa tragédia. E à guerra que se trava entre eles.
II.
A lei
Antes, porém, uma pequena (e óbvia, mas necessária)
introdução.
Todos nós aprendemos, nos primeiros anos de escola,
que o ser humano é um animal social. Não suporta viver em isolamento; é de sua
natureza conviver uns com os outros, em grupos. Ora, é também inerente à nossa
índole desenvolver interesses individuais e coletivos, que nos agradam e beneficiam.
Por isso, é natural posicionarmo-nos em defesa deles.
Ocorre que os demais membros do grupo fazem a mesma
coisa, e frequentemente os interesses de um esbarram no de outro, gerando
conflitos. Desde seus primórdios pré-históricos, a humanidade percebeu que se
não regulasse as relações entre as pessoas, e seus respectivos interesses, os
conflitos tenderiam a se agravar, o que deterioraria a convivência a tal ponto
de torná-la impossível.
Assim, desenvolveu-se e aperfeiçoou-se, ao longo
dos milênios, um conjunto de convenções capazes de fazer com que a vida em
grupo se tornasse possível.
A essa criação deu-se o nome de lei, e é requisito
fundamental de sua eficácia um pacto, entre os integrantes do grupo, pelo qual
concordam em a ela submeter-se. Caso contrário, os conflitos degenerariam, e o
grupo, do qual nenhum de nós quer abrir mão, se inviabilizaria.
É claro que, dadas as complexidades humanas,
nenhuma lei é absolutamente consensual. Sempre haverá quem discorde deste ou
daquele dispositivo. Mas faz parte do pacto, também, a presunção de que estes
refletem o ponto-de-vista da maioria, e que os descontentes, que se presumem
minoria, se curvam.
Pois bem.
III.
A Polícia e o Criminoso
Quero crer que os meus raros leitores já conhecem
de sobra meu entendimento sobre a função da polícia. Resumo-o, entretanto, mais
uma vez, a fim de proporcionar melhor compreensão do que pretendo afirmar.
Aqui ou em qualquer lugar do mundo, a polícia é uma
corporação, constituída e regulada pela sociedade, que, por delegação e
autorização dela, está habilitada a usar da força em prol da preservação da
ordem e da paz social, visando, acima de tudo, a proteção da própria sociedade.
A necessidade da existência dessa instituição
decorre, como é óbvio, da construção, em todo e qualquer grupo social, de
contextos que produzem indivíduos e grupos que se dedicam a, de um ou outro
modo, conturbar a ordem e a paz social, ameaçando, assim, o conjunto dessa
sociedade.
Significa tudo isso dizer que é inevitável que
algumas pessoas, por qualquer razão, resolvem romper o pacto social ao qual me
referi acima, e optam por não se submeter ao conjunto de leis.
A sociedade, então, cria os meios de se defender
disso, até porque sua própria existência depende da solidez desse pacto.
Trata-se então de, na medida do possível, diminuir
(já que é impossível eliminar de todo) a ameaça. Em outras palavras, combater,
incessantemente, as violações da lei, que perturbam a paz e a ordem, seja
identificando e revertendo as causas que as geram, seja punindo e
ressocializando os seus perpetradores.
Examino aqui, portanto, o papel de dois dos
principais atores desse triste espetáculo. Um que ameaça a sociedade violando a
lei, e outro que é encarregado por ela de protegê-la dessa ameaça, dando
combate ao primeiro.
O pressuposto absolutamente obrigatório desse enfrentamento, claro, é a preservação da
lei.
Os primeiros (que genericamente podemos aqui chamar
de criminosos) estão, por definição, à margem dela.
Devem, portanto, receber, com todo o rigor, o
tratamento que ela própria prevê em cada uma das situações específicas de sua
transgressão.
Quanto aos segundos, os policiais, são encarregados
pela sociedade exatamente de preservar esta mesma lei.
Exatamente por isso, seria um contra-senso absoluto
se, no exercício desse dever, a mesma lhes permitisse violá-la.
A sociedade, como vimos, é a criadora da lei, e sua
principal guardiã. Tem nela – e o sabe – a única garantia de sua sobrevivência.
A observância estrita dos preceitos legais, pelo conjunto da sociedade,
portanto, é da sua própria natureza fundamental, decorrência obrigatória
inseparável de sua existência.
Institucionalizado o desrespeito à lei, instaura-se
o caos. Se qualquer violação receber sanção social, abrem-se as portas para que
a recebam todas. Afinal, qual o critério para definir qual a norma que pode ser
violentada, e qual a que não? A exceção se tornaria a regra; os conflitos
voltariam a se agravar, a convivência a degenerar, e o grupo a se dissolver.
Em uma palavra: se tolerar a desobediência da lei,
a sociedade estará matando a si própria.
Vem daí a distinção fundamental, inflexível e
inafastável que separa os dois atores acima referidos.
Um só existe porque viola a lei. O outro está
obrigado a cumpri-la.
Até porque, se não o fizer, estará se igualando a
seu contendor. E, assim, trocando de lado. De guardião da lei, passa a seu
violador. Portanto, um criminoso.
Muito bem.
IV.
Distorção
Acontece que nem sempre essas regras são
respeitadas pelos policiais. A dura realidade do confronto, travado dia após
dia, por anos a fio, brutaliza espíritos, vicia julgamentos, distorce convicções.
Além disso, pessoas aficionadas do confronto físico, da afirmação da
personalidade pela violência, ou da crença nela como método de resolução de
conflitos, e, ainda outras, portadoras de recalques diversos, acorrem à
profissão policial na esperança de ali, pelo uso de arma e da força, exercitar tais
convicções, ou dar vazão a frustrações.
Tal uso, nessas condições, frauda o permissivo
social. Este os autoriza a tanto, como já disse, exclusivamente para instaurar,
preservar e, quando for o caso, restaurar a paz. E os condiciona a fazê-lo
estritamente dentro da lei.
Há que se partir do pressuposto de que esta fornece
os instrumentos necessários à tarefa. Ela reflete a posição social, na medida
em que incorpora o pensamento da sua maioria. Além do mais, vem sendo
construída pela civilização ao longo dos séculos.
Por outro lado, nenhuma lei é imutável, e quando a
maioria percebe a necessidade de sua atualização ou melhora, elas ocorrem. Não
é um sistema perfeito, mas é o melhor que o homem conseguiu construir.
Não está em discussão, portanto, a opinião pessoal
de qualquer indivíduo, policial ou não, se os recursos legais são ou não
suficientes para dar conta das situações delituosas a serem enfrentadas. É com
eles que se tem que contar.
No entanto, não é assim que se dá na prática.
Por várias razões, entre as quais aquelas acima
expostas, e também porque muitas vezes discordam do instrumental legal e de sua
eficácia, os policiais terminam por se nivelar aos criminosos, e decidem
enfrentá-los em seus próprios termos.
Ao fazê-lo violam seu papel, subvertem a ordem
legal e sabotam a própria democracia.
Esta é feita de pesos e contrapesos, e de papéis
definidos. Não cabe ao policial acusar alguém, ou julgá-lo, decidindo se é “bandido”,
se é culpado ou inocente, mas ele muitas vezes o faz. E, pior, sem direito à
defesa. Não cabe ao policial estipular ou aplicar a pena por este ou aquele
crime, mas ele frequentemente o faz. E o faz pelos parâmetros daqueles contra
quem se posta, ou seja, sem critério ou limite estipulado em lei.
Faz, com as próprias mãos, o que julga ser justiça,
mas que dela não passa de arremedo. Aliás, é o seu contrário. Porque viola a
lei. E, portanto, iguala sua ação à de quem pensa combater.
V.
Explicação necessária
Que fique aqui bem claro, antes que alguém se
precipite em conclusões esdrúxulas: não estou defendendo, sob hipótese alguma,
nenhum criminoso. E, também, não estou, de modo algum, atacando a polícia.
Estou apenas analisando os respectivos papéis na
guerra que ora travam
Sendo eles totalmente diferentes, não podem ser
olhados ou abordados a partir de pressupostos iguais, como querem fazer alguns.
A diferença abissal, para efeitos dessa análise, é
que o criminoso não recebeu nenhum poder da sociedade.
Cobrar-lhe regras é um contra-senso. Quebrá-las é
da própria natureza do que faz. E quando o faz, a cobrança social se dá na forma
e no rigor da lei.
O policial, não. Ao contrário. Recebe da sociedade
um imenso poder, condicionado a regras. Não está autorizado a quebrá-las. Se o
faz, deve ser cobrado por isso.
É que grassa no meio justamente dos policiais –e
seus assemelhados – adeptos das práticas aqui criticadas um “complexo de
perseguição” infundado, mas através do qual se julgam injustiçados pelos
defensores do rigor legal na sua atuação.
Costumam desfazer dessas pessoas. Argumentam que
elas são “defensoras de bandidos” (de onde a famosa e estúpida frase “Gosta de
bandido? Leve pra casa!”, tão divulgada), e que, ocupadas com isso, esquecem
dos direitos deles, policiais.
Enganam-se. Redondamente. Partem do pressuposto –
falso – de que a análise deve nivelar suas atuações, e as respectivas
consequências, com as dos criminosos.
O que se diz, porém, não é isso, mas, tão somente,
que a lei é universal. Aplica-se a todos. Inclusive a criminosos e policiais.
E que a estes cabe “fazer cumprir a lei,
cumprindo-a” (expressão cunhada pelo Instituto Cidadania, em 2002).
Cada assassinato é lamentável, seja quem for a vítima. Que isso fique, também, muito claro. Ser humano que é, o policial é titular de todos os
direitos correspondentes. E, pela sua luta, quando travada com bravura e na legalidade, merece toda a admiração e gratidão.Cada vez que qualquer deles for atacado, isso merece, sim, a total e enérgica repulsa, de todos. A resposta, como não poderia deixar de ser, está na lei. E esta deve ser aplicada com todo rigor, sobre o atacante.
Por outro lado, todas as vezes em que um policial,
extrapolando dos seus poderes e com isso
violando a lei, atacar aquele que ele entendeu, ao seu alvitre, que o
“merecia”, a lei deve igualmente recair sobre ele.
Papéis diferentes, mas direitos iguais e deveres
iguais.
Então, ao contrário das acusações dos “perseguidos”,
a posição aqui defendida não os distingue dos “bandidos”, beneficiando estes
últimos. Pelo contrário, iguala todos os cidadãos à sombra da lei.
Porque, é óbvio, fora da lei só há o caos.
VI.
Na prática
Dou abaixo alguns exemplos visuais das distorções,
todos postados por policiais ou assemelhados, na rede social “Facebook”:
A pergunta que recai sobre esta última imagem, não pode deixar de ser feita. Por que não são assassinados em um ano 86 (agora já são 90) juízes, deputados, padres, pastores ou executivos da bolsa? Por que isso ocorre tão somente com policiais?
Não há hipocrisia. Há uma guerra. Juízes, deputados padres, pastores e executivos da bolsa não estão envolvidos nela. Mas policiais sim.Infelizmente, alguns deles caíram na armadilha de entrar nela, ao invés de evitá-la. Ora, na guerra mata-se e morre-se.
Para ver outras manifestações do tipo, sugiro que
você visite a página “Eu nasci para ser polícia”, na mesma rede social.
Há também a cultura da coragem física, que é decorrência direta da
crença na violência como método eficaz de resolução de conflitos. A distorção
consiste em colocá-la em oposição direta e maniqueísta a uma assim chamada
“covardia”. “Homem” de verdade”, “macho” que merece consideração, seria aquele
que enfrenta o confronto físico de peito aberto. Só nisso é que se adquiriria
crédito para falar de segurança pública.
Todos os demais, nessa visão, não teriam moral para
qualquer manifestação.
Veja um exemplo, colhido na mesma fonte:
Ambas as facetas dessa cultura se desnudam na
idolatria que vários policiais dedicam à figura de um crânio humano transfixado
por um punhal. É a chamada “faca na caveira”, ao mesmo tempo um símbolo icônico
de destemor e auto-afirmação, uma fantasia de bravura, e uma subversão completa
da própria essência da função policial, que é zelar pela vida e promovê-la.
No entanto, cultuam um emblema da morte. Veja:
Comentário que acompanha a imagem: "o bicho pega e o pau come, mas quem
tem uma destas no peito, sabe quem vai estar em pé quando a poeira baixar
".
E
VII.
Conclusão
Não há qualquer dúvida de que os policiais estão
sendo mortos por ordem do crime organizado.
Não se está aqui com a pretensão de decidir se quem
nasceu antes foi o ovo ou a galinha.
A violência inicial perdeu-se nas areias do tempo.
O que se sabe com absoluta certeza é que a resposta a ela no mesmo diapasão sempre
concretizará um círculo vicioso crescente. Violência só gera mais violência.
Como disse, creio firmemente que os policiais foram
levados a essa cultura em muito por conta da brutalidade que são obrigados a
enfrentar todos os dias.
Isso explica, mas não justifica.
Até porque, não é de espantar que diante da postura
mostrada com eloquência pelas imagens acima – ativa ou reativa, já não mais vem ao caso – os criminosos recrudesçam sua própria ação violenta – a qual,
igualmente, não importa mais se é ativa ou reativa. Esta é a linguagem que lhes
é familiar. Este é o terreno no qual transitam com facilidade. Este é o código ao
qual se filiam desde sempre.
Provavelmente até agradecem.
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