terça-feira, 6 de novembro de 2012

Guerra


I.                    Preâmbulo

De uns tempos para cá explodiu uma onda de violência sem precedentes na Região Metropolitana de São Paulo.
Inúmeros assassinatos ocorrem todos os dias. Os mortos já se contam às dezenas.
Em meio a essas mortes ressalta-se a de policiais, em proporção absurda. Colhidos de surpresa, quase sempre fora de serviço, esses profissionais tornaram-se alvos preferenciais da violência homicida.
A pergunta que fica no ar, intrigando a todos, estudiosos e leigos, igualmente perturbados com o inusitado da situação, diz respeito à razão, ou razões, que levaram a esse fenômeno macabro.
De minha parte, tenho também me indagado. E tudo o que posso dizer em resposta é que, a meu ver, não há uma resposta. Pelo menos não uma única.
Estamos diante de uma situação por demais complexa, em que inúmeros são os fatores e as variáveis, de natureza social, sociológica, cultural e mesmo econômica, a condicionar comportamentos e atitudes dos mais variados atores.
Leviano será, portanto, aquele que se arriscar a simplificar. Irresponsável, sem dúvida, será qualquer interpretação maniqueísta, que divida os contendores entre bons e maus absolutos. Essa explicação, além de não dar conta, minimamente, de esclarecer o problema, não levará, de modo algum, à possibilidade de solucioná-lo.
Até porque nem mesmo se trata de um confronto tão somente entre dois lados.
Não há preto, e não há branco. A conflagração em curso envolve, isto sim, inúmeros tons de cinza.
O alcance do meu parco instrumental teórico ou intelectual passa muito longe dessa complexidade, razão pela qual não me vejo com as mínimas condições de entender e explicar a situação, em toda sua amplitude. Deixo para os cientistas sociais as análises mais aprofundadas capazes fazê-lo, e assim, quem sabe, apontar uma saída.
De minha parte, tenho apenas uma pequena contribuição que gostaria de dar. Ela diz respeito aos papéis de alguns dos atores dessa tragédia. E à guerra que se trava entre eles.


II.                   A lei

Antes, porém, uma pequena (e óbvia, mas necessária) introdução.
Todos nós aprendemos, nos primeiros anos de escola, que o ser humano é um animal social. Não suporta viver em isolamento; é de sua natureza conviver uns com os outros, em grupos. Ora, é também inerente à nossa índole desenvolver interesses individuais e coletivos, que nos agradam e beneficiam. Por isso, é natural posicionarmo-nos em defesa deles.
Ocorre que os demais membros do grupo fazem a mesma coisa, e frequentemente os interesses de um esbarram no de outro, gerando conflitos. Desde seus primórdios pré-históricos, a humanidade percebeu que se não regulasse as relações entre as pessoas, e seus respectivos interesses, os conflitos tenderiam a se agravar, o que deterioraria a convivência a tal ponto de torná-la impossível.
Assim, desenvolveu-se e aperfeiçoou-se, ao longo dos milênios, um conjunto de convenções capazes de fazer com que a vida em grupo se tornasse possível.
A essa criação deu-se o nome de lei, e é requisito fundamental de sua eficácia um pacto, entre os integrantes do grupo, pelo qual concordam em a ela submeter-se. Caso contrário, os conflitos degenerariam, e o grupo, do qual nenhum de nós quer abrir mão, se inviabilizaria.
É claro que, dadas as complexidades humanas, nenhuma lei é absolutamente consensual. Sempre haverá quem discorde deste ou daquele dispositivo. Mas faz parte do pacto, também, a presunção de que estes refletem o ponto-de-vista da maioria, e que os descontentes, que se presumem minoria, se curvam.
Pois bem.


III.                A Polícia e o Criminoso

Quero crer que os meus raros leitores já conhecem de sobra meu entendimento sobre a função da polícia. Resumo-o, entretanto, mais uma vez, a fim de proporcionar melhor compreensão do que pretendo afirmar.
Aqui ou em qualquer lugar do mundo, a polícia é uma corporação, constituída e regulada pela sociedade, que, por delegação e autorização dela, está habilitada a usar da força em prol da preservação da ordem e da paz social, visando, acima de tudo, a proteção da própria sociedade.
A necessidade da existência dessa instituição decorre, como é óbvio, da construção, em todo e qualquer grupo social, de contextos que produzem indivíduos e grupos que se dedicam a, de um ou outro modo, conturbar a ordem e a paz social, ameaçando, assim, o conjunto dessa sociedade.
Significa tudo isso dizer que é inevitável que algumas pessoas, por qualquer razão, resolvem romper o pacto social ao qual me referi acima, e optam por não se submeter ao conjunto de leis.
A sociedade, então, cria os meios de se defender disso, até porque  sua própria existência depende da solidez desse pacto.
Trata-se então de, na medida do possível, diminuir (já que é impossível eliminar de todo) a ameaça. Em outras palavras, combater, incessantemente, as violações da lei, que perturbam a paz e a ordem, seja identificando e revertendo as causas que as geram, seja punindo e ressocializando os seus perpetradores.
Examino aqui, portanto, o papel de dois dos principais atores desse triste espetáculo. Um que ameaça a sociedade violando a lei, e outro que é encarregado por ela de protegê-la dessa ameaça, dando combate ao primeiro.
O pressuposto absolutamente obrigatório  desse enfrentamento, claro, é a preservação da lei.
Os primeiros (que genericamente podemos aqui chamar de criminosos) estão, por definição, à margem dela.
Devem, portanto, receber, com todo o rigor, o tratamento que ela própria prevê em cada uma das situações específicas de sua transgressão.
Quanto aos segundos, os policiais, são encarregados pela sociedade exatamente de preservar esta mesma lei.
Exatamente por isso, seria um contra-senso absoluto se, no exercício desse dever, a mesma lhes permitisse violá-la.
A sociedade, como vimos, é a criadora da lei, e sua principal guardiã. Tem nela – e o sabe – a única garantia de sua sobrevivência. A observância estrita dos preceitos legais, pelo conjunto da sociedade, portanto, é da sua própria natureza fundamental, decorrência obrigatória inseparável de sua existência.
Institucionalizado o desrespeito à lei, instaura-se o caos. Se qualquer violação receber sanção social, abrem-se as portas para que a recebam todas. Afinal, qual o critério para definir qual a norma que pode ser violentada, e qual a que não? A exceção se tornaria a regra; os conflitos voltariam a se agravar, a convivência a degenerar, e o grupo a se dissolver.
Em uma palavra: se tolerar a desobediência da lei, a sociedade estará matando a si própria.
Vem daí a distinção fundamental, inflexível e inafastável que separa os dois atores acima referidos.
Um só existe porque viola a lei. O outro está obrigado a cumpri-la.
Até porque, se não o fizer, estará se igualando a seu contendor. E, assim, trocando de lado. De guardião da lei, passa a seu violador. Portanto, um criminoso.
Muito bem.


IV.                Distorção

Acontece que nem sempre essas regras são respeitadas pelos policiais. A dura realidade do confronto, travado dia após dia, por anos a fio, brutaliza espíritos, vicia julgamentos, distorce convicções. Além disso, pessoas aficionadas do confronto físico, da afirmação da personalidade pela violência, ou da crença nela como método de resolução de conflitos, e, ainda outras, portadoras de recalques diversos, acorrem à profissão policial na esperança de ali, pelo uso de arma e da força, exercitar tais convicções, ou dar vazão a  frustrações.
Tal uso, nessas condições, frauda o permissivo social. Este os autoriza a tanto, como já disse, exclusivamente para instaurar, preservar e, quando for o caso, restaurar a paz. E os condiciona a fazê-lo estritamente dentro da lei.
Há que se partir do pressuposto de que esta fornece os instrumentos necessários à tarefa. Ela reflete a posição social, na medida em que incorpora o pensamento da sua maioria. Além do mais, vem sendo construída pela civilização ao longo dos séculos.
Por outro lado, nenhuma lei é imutável, e quando a maioria percebe a necessidade de sua atualização ou melhora, elas ocorrem. Não é um sistema perfeito, mas é o melhor que o homem conseguiu construir.
Não está em discussão, portanto, a opinião pessoal de qualquer indivíduo, policial ou não, se os recursos legais são ou não suficientes para dar conta das situações delituosas a serem enfrentadas. É com eles que se tem que contar.
No entanto, não é assim que se dá na prática.
Por várias razões, entre as quais aquelas acima expostas, e também porque muitas vezes discordam do instrumental legal e de sua eficácia, os policiais terminam por se nivelar aos criminosos, e decidem enfrentá-los em seus próprios termos.
Ao fazê-lo violam seu papel, subvertem a ordem legal e sabotam a própria democracia.
Esta é feita de pesos e contrapesos, e de papéis definidos. Não cabe ao policial acusar alguém, ou julgá-lo, decidindo se é “bandido”, se é culpado ou inocente, mas ele muitas vezes o faz. E, pior, sem direito à defesa. Não cabe ao policial estipular ou aplicar a pena por este ou aquele crime, mas ele frequentemente o faz. E o faz pelos parâmetros daqueles contra quem se posta, ou seja, sem critério ou limite estipulado em lei.
Faz, com as próprias mãos, o que julga ser justiça, mas que dela não passa de arremedo. Aliás, é o seu contrário. Porque viola a lei. E, portanto, iguala sua ação à de quem pensa combater.


V.                  Explicação necessária

Que fique aqui bem claro, antes que alguém se precipite em conclusões esdrúxulas: não estou defendendo, sob hipótese alguma, nenhum criminoso. E, também, não estou, de modo algum, atacando a polícia.
Estou apenas analisando os respectivos papéis na guerra que ora travam
Sendo eles totalmente diferentes, não podem ser olhados ou abordados a partir de pressupostos iguais, como querem fazer alguns.
A diferença abissal, para efeitos dessa análise, é que o criminoso não recebeu nenhum poder da sociedade.
Cobrar-lhe regras é um contra-senso. Quebrá-las é da própria natureza do que faz. E quando o faz, a cobrança social se dá na forma e no rigor da lei.
O policial, não. Ao contrário. Recebe da sociedade um imenso poder, condicionado a regras. Não está autorizado a quebrá-las. Se o faz, deve ser cobrado por isso.
É que grassa no meio justamente dos policiais –e seus assemelhados – adeptos das práticas aqui criticadas um “complexo de perseguição” infundado, mas através do qual se julgam injustiçados pelos defensores do rigor legal na sua atuação.
Costumam desfazer dessas pessoas. Argumentam que elas são “defensoras de bandidos” (de onde a famosa e estúpida frase “Gosta de bandido? Leve pra casa!”, tão divulgada), e que, ocupadas com isso, esquecem dos direitos deles, policiais.
Enganam-se. Redondamente. Partem do pressuposto – falso – de que a análise deve nivelar suas atuações, e as respectivas consequências, com as dos criminosos.
O que se diz, porém, não é isso, mas, tão somente, que a lei é universal. Aplica-se a todos. Inclusive a criminosos e policiais.
E que a estes cabe “fazer cumprir a lei, cumprindo-a” (expressão cunhada pelo Instituto Cidadania, em 2002).
Cada assassinato é lamentável, seja quem for a vítima. Que isso fique, também, muito claro. Ser humano que é, o policial é titular de todos os direitos correspondentes. E, pela sua luta, quando travada com bravura e na legalidade, merece toda a admiração e gratidão.Cada vez que qualquer deles for atacado, isso merece, sim, a total e enérgica repulsa, de todos. A resposta, como não poderia deixar de ser, está na lei. E esta deve ser aplicada com todo rigor, sobre o atacante.
Por outro lado, todas as vezes em que um policial, extrapolando dos seus poderes e com isso  violando a lei, atacar aquele que ele entendeu, ao seu alvitre, que o “merecia”, a lei deve igualmente recair sobre ele.
Papéis diferentes, mas direitos iguais e deveres iguais.
Então, ao contrário das acusações dos “perseguidos”, a posição aqui defendida não os distingue dos “bandidos”, beneficiando estes últimos. Pelo contrário, iguala todos os cidadãos à sombra da lei.
Porque, é óbvio, fora da lei só há o caos.

VI.                Na prática

Dou abaixo alguns exemplos visuais das distorções, todos postados por policiais ou assemelhados, na rede social “Facebook”:





A pergunta que recai sobre esta última imagem, não pode deixar de ser feita. Por que não são assassinados em um ano 86 (agora já são 90) juízes, deputados, padres, pastores ou executivos da bolsa? Por que isso ocorre tão somente com policiais?
Não há hipocrisia. Há uma guerra. Juízes, deputados padres, pastores e executivos da bolsa não estão envolvidos nela. Mas policiais sim.Infelizmente, alguns deles caíram na armadilha de entrar nela, ao invés de evitá-la. Ora, na guerra mata-se e morre-se.
Para ver outras manifestações do tipo, sugiro que você visite a página “Eu nasci para ser polícia”, na mesma rede social.
Há também a cultura da coragem física, que é decorrência direta da crença na violência como método eficaz de resolução de conflitos. A distorção consiste em colocá-la em oposição direta e maniqueísta a uma assim chamada “covardia”. “Homem” de verdade”, “macho” que merece consideração, seria aquele que enfrenta o confronto físico de peito aberto. Só nisso é que se adquiriria crédito para falar de segurança pública.
Todos os demais, nessa visão, não teriam moral para qualquer manifestação.
Veja um exemplo, colhido na mesma fonte:


 A ressaltar, ainda, a pobreza e reducionismo da análise, que criminaliza a pobreza e limita o combate ao crime ao enfrentamento na favela.
Ambas as facetas dessa cultura se desnudam na idolatria que vários policiais dedicam à figura de um crânio humano transfixado por um punhal. É a chamada “faca na caveira”, ao mesmo tempo um símbolo icônico de destemor e auto-afirmação, uma fantasia de bravura, e uma subversão completa da própria essência da função policial, que é zelar pela vida e promovê-la.
No entanto, cultuam um emblema da morte. Veja:


Comentário que acompanha a imagem: "o bicho pega e o pau come, mas quem tem uma destas no peito, sabe quem vai estar em pé quando a poeira baixar ".
E
  
 Comentário que acompanha a imagem: “vivemos por um único motivo . para que seu dia bandido, seja o inferno na terra.” (sic)


VII.              Conclusão

Não há qualquer dúvida de que os policiais estão sendo mortos por ordem do crime organizado.
Não se está aqui com a pretensão de decidir se quem nasceu antes foi o ovo ou a galinha.
A violência inicial perdeu-se nas areias do tempo. O que se sabe com absoluta certeza é que a resposta a ela no mesmo diapasão sempre concretizará um círculo vicioso crescente. Violência só gera mais violência.
Como disse, creio firmemente que os policiais foram levados a essa cultura em muito por conta da brutalidade que são obrigados a enfrentar todos os dias.
Isso explica, mas não justifica.
Até porque, não é de espantar que diante da postura mostrada com eloquência pelas imagens acima – ativa ou reativa, já não mais vem ao caso – os criminosos recrudesçam sua própria ação violenta – a qual, igualmente, não importa mais se é ativa ou reativa. Esta é a linguagem que lhes é familiar. Este é o terreno no qual transitam com facilidade. Este é o código ao qual se filiam desde sempre.
Provavelmente até agradecem.

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